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A arte da guerra
Diante da perspectiva de ofertas hostis, banqueiros e advogados estudam as estratégias de defesa que poderão ser utilizadas por corporações brasileiras

 

Para explicar a complexidade das movimentações que se apresentam a partir do anúncio de uma oferta hostil de tomada de controle, o mercado de capitais se vale, há muito tempo, de jargões medievais. As batalhas travadas entre feudos são mesmo o equivalente quase perfeito do que acontece numa situação como essa. De um lado, o alvo reúne seu exército para defender aquela porção de terra — proteger plantações, produção estocada, castelo, servos e outros habitantes. Se as tentativas se tornam poderosamente ameaçadoras, reforços externos são atraídos para auxiliar na estratégia: anciãos, membros do clero e da realeza, comandantes de outros exércitos se unem para desenhar novos planos de ação, e assim assegurar que a estrutura de poder até então constituída se mantenha. No outro extremo, o atacante faz de tudo para quebrar tais defesas. Tenta, inclusive, conquistar aliados dentro do exército que luta para derrotá-lo ou mesmo entre os servos e outros habitantes da região almejada.

Quando o alvo começa a enxergar as dificuldades de vencer sozinho, busca contar com a ajuda de cavaleiros brancos e seus auxiliares, os “squires”. Se nada disso adiantar, ainda restam as medidas desesperadas: desfazer-se dos bens mais valiosos e, desta forma, diminuir o interesse do opositor. Ou até mesmo apelar para a estratégia de terra arrasada, queimando tudo.

Por mais folclóricas que essas situações possam parecer, elas acontecem diariamente nos mercados em que as ofertas hostis são mais comuns. Em alguns deles, como na Europa, as possibilidades são limitadas pela lei e por códigos de conduta (os takeover codes). Em outros, como nos Estados Unidos, vale quase tudo, desde que se possa provar que as medidas foram adotadas para assegurar aos acionistas o máximo retorno possível — quase sempre traduzido pelo melhor preço.

Por aqui, ainda vivemos quase que totalmente no campo das idéias. As chamadas pílulas de veneno (poison pills) são os mecanismos de defesa mais conhecidos, embora tenham sido pouco testados. Mas, agora que a tendência das companhias de controle pulverizado se firmou, que a era de ofertas via mercado foi inaugurada (no caso Sadia x Perdigão) e que operações lá fora afetam subsidiárias de capital aberto no País (como a da Mittal com Arcelor), bancos de investimento e escritórios de advocacia começam a estudar as particularidades de nosso ambiente regulatório e identificar as adaptações que as tradicionais defesas anti-takeover requerem para que possam ser acionadas quando o momento oportuno chegar.

DEVER DE LEALDADE — A principal diferença, de acordo com alguns advogados, está no papel atribuído aos administradores e na delimitação legal de seus deveres. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, por exemplo, diretores e conselheiros de administração de companhias abertas brasileiras devem atuar no melhor interesse da companhia e não de seus acionistas. Thiago Sandim, sócio do Lefosse Advogados, aponta nos artigos 154 e 155 da Lei das S.As a delimitação dessa diferença. O primeiro define a finalidade das atribuições dos administradores (“exercer o que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia”) e o segundo, o seu dever de lealdade (“servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre seus negócios”). “Este é um fator que não existe em outras jurisdições e que deverá ser considerado para definir até que ponto os representantes da companhia-alvo poderão participar da defesa”, afirma Sandim.

O advogado Fernando Shayer, sócio do Machado Meyer Sendacz e Opice, entende que a melhor forma de assegurar que esses deveres sejam cumpridos levando em conta também os interesses dos acionistas é compor um comitê de análise da oferta para assessorar as decisões do conselho. “Para que possam agir de maneira leal com a companhia é fundamental que haja o envolvimento de conselheiros independentes e também de especialistas em questões jurídicas, financeiras e de negócios.” Essa equipe multidisciplinar terá papel importante na avaliação das conseqüências que a aceitação ou a recusa da oferta venham a ter sobre os atuais acionistas e também sobre o relacionamento com fornecedores, funcionários e todos aqueles a quem a companhia deve consideração.

Shayer lembra que, embora no mercado norteamericano os administradores estejam livres para adotar as defesas que bem entenderem, sua atuação deve guardar evidências de que a oferta foi devidamente ponderada. Esses “testes” envolvem a análise do preço, das intenções do proponente quanto ao futuro da companhia e de seus empregados e também os esforços para obter o máximo preço por ação que o mercado esteja disposto a pagar. Tais esforços passam, necessariamente, pela procura de ofertas concorrentes — quando entraria em cena o tão comentado cavaleiro branco (white knight), que nada mais é do que uma companhia que paga um preço melhor pelo alvo — ou de possibilidades de associação negociadas — que dão vez para os “white squires”, figuras que, na hierarquia dos exércitos medievais, vinham logo abaixo dos cavaleiros. Por meio de uma aliança, os squires podem fortalecer a musculatura da companhia, permitindo que ela derrote a oferta hostil.

Advogados acreditam que o espaço para atuação dos administradores em ofertas hostis é mais limitado no Brasil do que nos EUA

COMPASSO DE ESPERA — A direção que será tomada no caso brasileiro ainda não está clara e tudo indica que a sua definição só deva mesmo ocorrer caso a caso. Mas, baseando-se na legislação brasileira, tanto Sandim, do Lefosse, quanto Shayer, do Machado Meyer, acreditam que o espectro de atuação de administradores seja mais limitado aqui do que nos Estados Unidos, por exemplo. Para ilustrar, podemos pensar num tipo de defesa bem comum em situações de oferta hostil: a venda de ativos importantes da companhia como forma de diminuir o interesse do comprador e mudar as referências de preço. “Seria complexo provar que um passo desses foi dado no melhor interesse da companhia”, avalia Sandim.

O caráter hipotético que a questão ainda apresenta coloca os grandes bancos de investimento internacionais que atuam no País numa posição para lá de defensiva. Goldman Sachs, Credit Suisse, Merrill Lynch, UBS e Deutsche Bank — que figuram no topo do ranking mundial de prestação de serviços de estratégia de defesa anti-takeover — preferiram não atender as solicitações de entrevista desta reportagem, alegando a necessidade de preservar eventuais interesses de clientes. Sem o auxílio dessas fontes importantes de informação, o jeito foi recorrer à alternativa mais confiável para supor manobras que nossas companhias podem vir a utilizar: a História. Retomando o passo-a-passo de uma operação emblemática ocorrida no final dos anos 90 na Europa, identificamos algumas delas.

VODAFONE X MANNESMANN — Em 13 de novembro de 1999, a então maior operadora de telefonia celular do mundo, a britânica Vodafone, apresentou uma oferta pela aquisição do controle da alemã Mannesmann, que, além de atuar em telecomunicações, contava com uma divisão de engenharia e mecânica pesada (cujos ativos já faziam parte de uma política de desmobilização que viria culminar na concentração dos negócios da companhia no setor de telefonia). A oferta propunha uma troca de ações, na proporção de 43,7 papéis da Vodafone para cada ação da Mannesmann.

A proposta foi rejeitada de imediato pelos principais executivos da Mannesmann, que a classificaram como “extremamente desinteressante para os acionistas”, já que as condições de preço oferecidas eram inferiores ao valor de mercado atribuído aos papéis. Além disso, eles declararam que a operação não era sólida estrategicamente devido a diferenças de estrutura e perspectivas de crescimento econô- mico muito contrastantes entre as duas companhias. Seis dias depois, o conselho de administração referendou os argumentos apresentados e confirmou oficialmente a rejeição à oferta. Na seqüência, a Vodafone melhorou as condições de preço, alterando a relação de troca para 53,7 ações da Vodafone para cada ação da Mannesmann.

A alemã respondeu partindo para o ataque. No intuito de ganhar participação no mercado britânico, do qual a Vodafone detinha 35%, colocou uma oferta pela Orange, cuja participação naquele mesmo mercado era de 17%. Para arrematar a concorrente de sua potencial compradora, a Mannesmann aceitou pagar um prêmio de 17%. A medida levou a uma queda de 8% em suas ações e não afetou a determinação da Vodafone em prosseguir com sua oferta. Foi então que os trabalhadores da companhia alemã entraram em cena por meio do sindicato. O presidente da união dos empregados declarou aos jornais que eles estavam dispostos a qualquer coisa para impedir a tomada de controle. Dias depois, uma manifestação foi realizada no sindicato dos metalúrgicos para angariar aliados. Os empregados da companhia alemã saíram de lá com uma campanha baseada no slogan “Abaixo a oferta hostil: Mannesmann não está à venda”. O principal instrumento encontrado pelos trabalhadores para provar sua determinação foi a adoção de minigreves de dez minutos que ocorriam alternadamente em diferentes unidades produtivas da empresa.

Enquanto os trabalhadores ganhavam a mídia, os executivos da Mannesmann movimentavam suas estruturas de relações públicas para conquistar aliados entre outros formadores de opinião. Comunicados foram dirigidos aos acionistas e à comunidade de investidores salientando os riscos que a oferta trazia para a estratégia de longo prazo da companhia e, consequentemente, para a valorização de seus papéis. Campanhas de defesa da soberania alemã circularam na tentativa de recolher assinaturas de oposição à oferta e ganharam a pauta política. Grandes debates públicos envolvendo figuras políticas culminaram na declaração do chanceler Gerhard Schröder de que “as ofertas hostis prejudicavam a cultura corporativa e subestimavam as virtudes da gestão da companhia-alvo”. A mídia britânica respondeu de imediato, classificando a postura alemã de nacionalista, protecionista e hipócrita, lembrando ao mercado que a própria Mannesmann havia recentemente adquirido o controle da britânica Orange.

Defesa inclui a procura por ofertas concorrentes de companhias que se disponham a pagar um preço melhor

A Vodafone optou por uma linha mais sutil e colocou a propaganda a serviço de sua imagem de bom empregador e de empresa socialmente responsável. Para complementá-la, seu presidente fez publicar em todos os jornais diários de grande circulação na Alemanha uma carta aberta aos funcionários da Mannesmann assumindo o compromisso de que a fusão entre as duas companhias não representaria cortes nos postos de trabalho, que os funcionários alemães continuariam a ter representação no conselho de administração e que a concentração nas atividades de telecomunicações aconteceria de qualquer maneira, visto que a Mannesmann já tinha uma política de desmobilização dos outros ativos em curso.

Pressentindo que seria derrotada na batalha midiática, a Mannesmann apelou como podia, recorrendo a manobras jurídicas. Primeiramente, entrou com uma ação para impedir que o banco Goldman Sachs atuasse como assessor da Vodafone na oferta, alegando conflito de interesses, visto que o banco já havia prestado serviços para a alemã anteriormente. O resultado só piorou a situação da empresa alemã, quando o juiz do caso indeferiu o pedido e classificou a iniciativa como “inaceitável e totalmente descabida”.

O processo de desmobilização de ativos da divisão de mecânica pesada foi acelerado, apostando que o impacto dessa medida sobre o preço das ações da companhia afetaria a oferta a ponta de inviabilizá-la. Mais uma medida sem efeito, pois a Vodafone não apenas não desistiu da oferta como também apresentou uma nova e irrevogável proposta de preço: 58,96 ações. Diante do quadro, o presidente do conselho da Mannesmann optou por mudar de lado e recomendou a operação aos acionistas. O negócio foi selado em fevereiro de 2000, após negociações finais realizadas numa reunião de conselho que durou 11 horas.

A Vodafone desembolsou 112 bilhões de libras (aproximadamente US$ 190 bilhões) em ações para adquirir a concorrente. Para atender às leis de defesa da concorrência britânicas, a nova gigante teve de se desfazer da Orange, adquirida pela Mannesmann menos de 12 meses antes. O CEO da Vodafone assumiu o comando da nova empresa, a Vodafone AirTouch, e o presidente do conselho da Mannesmann, Klaus Esser, atuou como diretor executivo para facilitar o processo de transição.


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