O novo patrimônio nacional

O último ano de 2005 mostrou dados de consolidação do mercado de capitais brasileiro, quando foram registrados pela Comissão de Valores Mobiliários mais de R$ 70 bilhões em ofertas públicas de ações, debêntures, títulos de securitização de receitas futuras, entre outros. Os números de anos anteriores sempre haviam permanecido em torno de R$ 30 bilhões.

Os volumes do ano em curso mostram, definitivamente, que o mercado de capitais passa a exercer a sua função social de carrear recursos da poupança pública para o investimento produtivo e, como conseqüência, criar empregos na economia e tornar nosso país mais competitivo nessa era da globalização.

Ao fim de julho já foi computada, entre ofertas registradas e em exame para registro, cifra de quase R$ 90 bilhões, o que é extraordinário e permite prever um crescimento vigoroso da economia, já que tradicionalmente o mercado sempre se comporta antecipando a evolução da economia real.

No aspecto qualitativo podemos se pode saudar a entrada de novos participantes, como as com- panhias que estréiam suas ações na bolsa após um longo ciclo de preparação para lidar com o público investidor, através da ampla abertura de informações sobre seu patrimônio e performance, como também mediante a adoção de boas práticas de governança corporativa.

Ainda merece destaque um processo de criação de raízes do mercado que, através do garimpo feito pelos gestores dos fundos de investimento em participações, busca incentivar o empreendedorismo, o alicerce de uma economia de mercado. O ciclo virtuoso que foi forjado com o sucesso recente da venda em bolsa de posições acionárias detidas por esses investidores de risco está os incentivando, bem como a novos participantes, como os fundos de pensão, a cada vez mais procurar empresas com grande potencial de se tornar atrações na bolsa de valores.

Não devo esquecer de mencionar também a entrada de novas empresas no mercado, mesmo que de forma indireta, com alguma abertura de informações para permitir uma avaliação criteriosa de seus riscos, mediante a cessão de suas receitas futuras para os investidores de fundos de direitos credi tórios ou de certificados de recebíveis imobiliários. Algumas dessas empresas, caso a experiência com a securitização seja proveitosa, certamente serão, daqui a algum tempo, emissoras de debêntures ou mesmo de ações, beneficiando-se amplamente do menor custo de capital suprido pelo mercado de capitais.

O mercado de debêntures, responsável por mais da metade dos volumes ofertados, ainda carece de padronização e liquidez, e se ressente do apego dos intermediários e investidores à taxa do CDI, uma herança maldita dos tempos inflacionários. Com a iniciativa do Tesouro de fazer crescer a fatia em circulação de títulos públicos com taxa de juros pré-fixada, e a conseqüente criação de uma curva de juros, creio que os investidores e as tesourarias dos bancos estarão mais receptivos para a aquisição e negociação de debêntures.

Diante da nova e alvissareira realidade, posso afirmar que o mercado de capitais é um importante patrimônio nacional e deve ser preservado como tal. Este é o desafio que pretendo lançar com este artigo.

MAL COMPREENDIDO — Qual é a imagem do mercado de capitais em nossa sociedade? Certamente não é das melhores. Apesar dos esforços do bravo presidente da bolsa para popularizá-lo, ninguém sabe da contribuição do mercado para o desenvolvimento do País, mesmo na academia. Esta, inclusive, parece a mais distante dos fatos recentes.

Nosso país é tão complexo que nos damos conta de sua transformação com um retardo significativo da ocorrência dos fatos. Ainda hoje podemos ver na TV ou em colunas especializadas dos jornais alguns economistas afirmando que a única fonte de financiamento de longo prazo existente no País é o BNDES.

Quantos investidores aplicam suas poupanças em valores mobiliários, tais como ações e cotas de fundos de investimento? Alguém sabe? Carecemos de campanhas institucionais esclarecedoras das virtudes e riscos do mercado e de conscientização da população para a necessidade da poupança para viabilizar a compra da casa própria, o casamento, o nascimento do filho ou a aposentadoria.

Acredito que não falte verba para esse tipo de campanha, dada a pujança da Bovespa, BM&F, Cetip e Anbid, apenas para citar algumas entidades que, em conjunto, podem conduzi-las. Se houvesse apoio político, os recursos arrecadados pela CVM e excedentes a suas despesas ordinárias poderiam ser devotados para tal finalidade, em lugar de direcionados, como hoje, para a vala comum do gasto público.

Para que o mercado de capitais tenha êxito, é preciso que todos os participantes atuem com vigilância e exerçam suas responsabilidades

Como sabemos, o mercado bancário possui regras rígidas, que demandam certa quantidade de capital próprio das instituições financeiras para cada um dos riscos assumidos. Como nesse mercado os riscos são aceitos pelos bancos e não por seus clientes, o pressuposto é que havendo perdas com tais riscos o capital próprio da instituição bancária será suficiente para que os efeitos dos riscos se restrinjam ao capital do intermediário, não afetando o cliente ou o sistema bancário como um todo.

Já no mercado de capitais, não há requisitos de capital para intermediários ou outros profissionais de mercado, na medida em que os riscos são inteiramente assumidos pelos investidores dispersos pelo mercado. A exceção fica para as câmaras de compensação de operações realizadas em bolsas que se responsabilizam e, portanto, assumem o risco de sua liquidação, além de seguir uma regra de adequação de capital.

Em função dessas estruturas díspares, a literatura acadêmica sugere a especialização do mercado bancário para o financiamento de curto prazo, já que se tornaria proibitivo manter capital próprio para os riscos de longo prazo, enquanto o mercado de capitais se incumbe de suprir as necessidades de inversão de médio e longo prazos de maturação.

SISTEMA EM EQUILÍBRIO — Assim, o mercado de capitais, para seu êxito, requer uma atitude diuturna de vigilância de cada um dos seus participantes para que as operações ali cursadas representem, efetivamente, os riscos apresentados aos investidores e sua adequação à capacidade desses investidores de compreender tais riscos e de possuir estrutura financeira para suportá-los.

Tal qual a planta tenra, esse patrimônio nacional, para crescer de modo vigoroso e sustentado, precisa ter o solo adubado e sofrer algumas podas, além de receber volume suficiente de luz solar e ar de qualidade.

Nessa metáfora, adubar o solo significa assegurar aos participantes do mercado uma infra-estrutura adequada para o desenvolvimento de negócios, cujos riscos sejam claramente apresentados aos investidores que, por sua vez, sintam-se confiantes na integridade do mercado e, desta forma, motivados a aplicar suas poupanças em valo- res mobiliários para atingir objetivos de médio e longo prazos.

A poda pode ser configurada pela atividade de identificar e punir aqueles que estejam de alguma maneira agindo em detrimento da confiabilidade do mercado. Para que seja eficaz, tal atividade deve ser desenvolvida e executada desde os profissionais e as instituições de mercado, tais como os analistas, administradores de recursos, auditores, intermediários, emissores.

Em outra dimensão, as entidades que congregam esses profissionais e instituições, exercendo a função de auto-regulação, devem possuir mecanismos que lhes autorizem a supervisionar seus afiliados e aplicar penalidades aos mesmos.

O órgão regulador, no topo dessa “pirâmide da poda”, deve ter amplos poderes conferidos pela lei para acompanhar as atividades dos participantes do mercado e aplicar as penas àqueles que deixem de observar os preceitos da legislação. Como não pode verificar todas as situações de ilícito, como um “grande irmão”, deve ter o foco em comportamentos inaceitáveis, que ameacem a integridade ou a confiabilidade do mercado, ou cuja apenação tenha caráter exemplar ou educativo para o mesmo.

Já a qualidade do ambiente, representada pela luz solar e a atmosfera, pode ser entendida pela atitude da sociedade em relação ao mercado, bem como a do público investidor, inclusive o institucional, em defender sua poupança e em buscar a eficiência para suas aplicações, mediante o incremento de uma cultura financeira e, assim, da capacidade de acompanhamento dos investimentos e de seleção dos profissionais encarregados de seu assessoramento e da condução dos negócios.

A primeira linha de defesa da integridade e confiabilidade é aquela realizada pelos intermediários e profissionais de mercado, em suas atividades cotidianas de oferecer produtos, orientar investidores ou analisar negócios ou riscos disponíveis para investimento.

Para que funcione a contento é necessário que as instituições possuam código de conduta abrangente e rígido para seus funcionários, que preveja sua supervisão por pessoas habilitadas e especializadas em controles internos, com poderes e independência para averiguar quaisquer indícios de infrações ao código, à regra da autoregulação e à legislação governamental. Deve, por óbvio, contar também com previsão de penalidades para as hipóteses de seu descumprimento.

As equipes fiscalizadoras dos códigos de conduta costumam ser pequenas para a tarefa ou se reportar a pessoas em conflito de interesses

A atividade de controle interno dos profissionais do mercado é, no meu entender, ainda muito incipiente e pouco divulgada. Como sua adoção implica em custos, creio que somente motivados por despesas, financeiras ou de imagem, incorridas em razão da inexistência ou frouxidão de controles internos, através, por exemplo, de ações de indenização ou de penalidades administrativas, os intermediários e outros profissionais venham a investir na criação e manutenção de aparatos de conduta e supervisão que melhor se adeqüem a suas realidades de risco.

Já no que concerne à auto-regulação, exercida por entidades que congregam esses profissionais e instituições de que falamos há pouco, tem havido progressos relevantes na elaboração de códigos de conduta para seus associados, que observam padrões semelhantes aos adotados em países que possuem mercado de capitais desenvolvido.

A CVM carece de foco que a permita priorizar os casos que possam ameaçar mais a integridade e a confiabilidade do mercado de capitais

Espero que esse movimento se irradie para todas as entidades que podem desempenhar um papel auto-regulador bastante importante entre seus pares. Entretanto, enfatizo que, mesmo naquelas entidades que apresentam códigos seguindo o estado da arte global, não enxergo resultados da atividade de supervisão desses códigos refletidos em penalidades àqueles que os infringem.

As equipes encarregadas da aplicação dos códigos costumam ser pequenas para a tarefa e, geralmente, se reportam a pessoas que podem apresentar conflitos de interesse no julgamento das questões levantadas.

Assim, vejo como uma forma de sair desse impasse a segregação das tarefas de supervisão e aplicação de penalidades das atividades cotidianas dessas entidades. Desta forma, a fiscalização passaria a ser exercida com independência técnica e financeira, a exemplo da solução adotada pela associação dos corretores dos EUA que criou a NASD Regulation para lidar exclusivamente com a auto-regulação.

Já em relação à atividade da CVM, é verdade que nos anos recentes houve um enorme esforço da autarquia para o aperfeiçoamento do marco regulatório do mercado de capitais, com ênfase na atividade de aplicação da legislação — enforcement —, que gerou recordes de julgamentos e significativa redução do prazo compreendido entre o cometimento do ilícito e a aplicação da pena aos infratores.

Há, inclusive, expectativa de que, ao final de 2006, tal prazo seja, em média, de dois anos — uma performance excelente mesmo se comparada à de agências reguladoras de mercados considerados desenvolvidos.

No entanto, carece a CVM, em sua atividade de supervisão, de foco que a permita priorizar os casos que possam ameaçar mais significativamente a integridade e a confiabilidade do mercado de capitais.

A ausência de uma diretriz de fixação de prioridades inibe a capacidade do regulador de atuar mais fortemente nos casos exemplares, haja vista a restrição de recursos humanos, financeiros e tecnológicos a que a CVM é submetida.

Aliás, nada tenho contra o modelo enxuto de pessoal adotado desde a criação da autarquia, que a torna uma referência entre seus pares, mas demanda uma atitude bastante focalizada de sua supervisão, capaz de agir prontamente onde os riscos são maiores e mais ameaçadores para à saúde do mercado.

Nessa linha de focalização da supervisão, posso citar a iniciativa do órgão regulador do mercado de capitais do Reino Unido, que estabeleceu toda uma metodologia de identificação de riscos para pautar suas atividades de supervisão e enforcement. Outras agências governamentais já estão seguindo a experiência inglesa. A CVM estuda o modelo com o objetivo de verificar a viabilidade de sua adoção no País.

CULTURA E EDUCAÇÃO — Deixo para o fim o maior desafio ao bom funcionamento do mercado: a atitude do investidor em relação aos produtos oferecidos.

Vejo, com tristeza, que não se aplica ao investidor brasileiro a máxima de que o principal órgão do corpo é o seu bolso. Em realidade, talvez por questões culturais, mais vale o benefício de uma boa relação pessoal com o profissional de mercado que o atende, do que uma atitude mais questionadora ou impessoal na defesa de seus interesses financeiros.

Como nós brasileiros mudamos nossa atitude para o uso de cinto de segurança nos carros ou em relação ao fumo, em resposta à massiva campanha de esclarecimentos realizada, acredito que o mesmo remédio possa ser de utilidade para ampliar a conscientização da população para os riscos do mercado.

Além da questão cultural, há pouca educação financeira da população como um todo, inclusive da classe social que possui recursos para aplicação no mercado. Para tal, volto à experiência inglesa, onde foi estabelecido um convênio entre o regulador do mercado de capitais e o Ministério da Educação para incluir a educação financeira como matéria de cidadania, já no ensino fundamental.

Assim, desde a tenra idade as crianças do Reino Unido aprendem a importância da moeda, sua capacidade de compra, como conferir o troco, etc. Depois aprendem a calcular os juros nas compras à prestação e, dessa maneira, são capazes de tomar decisões refletidas sobre a alternativa de adquirir mais adiante e mais barato o produto oferecido, mediante o esforço de poupança.

Por fim, são instruídos a pesquisar os preços e taxas cobradas pelos mesmos serviços ou produtos oferecidos no mercado e conscientizados sobre a importância de sua atitude questionadora perante os profissionais de mercado.

Cremos que, mais cedo ou mais tarde, devamos adotar tal modelo, que hoje é restrito no País a certas instituições de ensino particulares, como forma eficaz de defesa dos cidadãos, especialmente dos consumidores dos mercados físicos e financeiros, não se restringindo aos do mercado de capitais.

O comportamento adequado de cada um dos membros da nossa pirâmide, além de garantir a integridade do mercado de capitais, aumentaria a eficiência da supervisão — que passaria a ser realizada com mais proximidade e conhecimento das operações e dos ilícitos — e tornaria os custos de regulação mínimos, item importante na preservação da competitividade do mercado brasileiro nessa era da globalização.

Neste ano em que a Comissão de Valores Mobiliários completa seus primeiros 30 anos, saudemos, pois, o surgimento do novo patrimônio nacional, sabendo de nossas responsabilidades individuais e institucionais de garantir a ele uma vida longa, como é desejado e necessário para o progresso de nosso País. Obs: As opiniões e conclusões externadas neste artigo são de inteira responsabilidade do articulista, não refletindo, necessariamente, o entendimento da Comissão de Valores Mobiliários – CVM.


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