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Um país que não conhece a sua história

Uma pergunta para os leitores a quem a chamada do título houver interessado, em comemoração aos 30 anos da edição da Lei das Sociedades Anônimas, celebrados em 2006. Qual destes institutos representou uma inovação do texto da Lei 6.404/76: os bônus de subscrição, o plano de opção de compra de ações para executivos e funcionários das companhias, a possibilidade de compra de ações pela própria emissora para manutenção em tesouraria e/ou cancelamento, o capital autorizado ou as debêntures conversíveis?

A resposta correta pode ser surpreendente, seja para aqueles que se alinharam, à época da edição da lei, entre os críticos da suposta “importação” servil de modelos norte-americanos (institutos esses hoje já totalmente “aclimatados” e em prática constante, para decepção dos críticos, que prognosticavam o seu fracasso e sustentavam a sua inutilidade), seja para os outros que, ao contrário, e com maior razão, elogiaram as inovações trazidas pelo novo diploma legislativo (ainda que, em alguns casos, sem entendê-las bem).

Na verdade, a resposta correta é simples: nenhum deles. Todos estavam devidamente regulamentados na Lei 4.728/65, editada mais de onze anos antes da Lei 6.404/76, de forma muitas vezes idêntica ao que consta da atual lei das companhias.

E, diga-se de passagem, o comentário não é feito para desmerecer o caráter absolutamente inovador de um dos mais bem acabados diplomas legislativos brasileiros, que tem resistindo incólume às mais diversas ameaças e ataques, a começar por um incessante ímpeto reformista que, como tive a oportunidade de dizer em outra oportunidade, seria algo que Sísifo certamente consideraria pior do que ter que arrastar a sua proverbial pedra ladeira acima.

Ao contrário, a questão inicialmente colocada tem por objetivo destacar o fato de que, também na área do direito societário, somos um país que não conhece a sua história, seja para elogiá-la, seja para criticá-la, de uma forma autorizada.

Com efeito, não deixa de ser curioso, para usar apenas um exemplo concreto ocorrido há alguns anos, ver discutir-se a emissão de debêntures simples acompanhada de bônus de subscrição, quando se sabe que a Unipar emitiu títulos dessa natureza ainda na década de 60.

E não se trata de uma questão meramente acadêmica. O desconhecimento da história (recente ou não) do direito societário, ou de qualquer outro ramo do direito, acaba fazendo com que, de um lado, passem por novidade institutos já tradicionais, e, de outro, se perca o benefício da jurisprudência (judicial ou administrativa) construída à luz das normas anteriores, estas sim, verdadeiramente inovadoras.

A título de exemplo, a doutrina analisa hoje o suposto avanço simplificador representado pela possibilidade de emissão de debêntures simples sem a manifestação da assembléia geral — apenas mediante resolução do conselho de administração. Destaca-se, a respeito, o não menos suposto cuidado do legislador, que teria impedido a emissão de debêntures conversíveis sem tal aprovação em assembléia geral.

Na verdade, a leitura da Lei 4.728/65 e a prática desenvolvida na sua vigência já mostrava que a distinção entre as formalidades necessárias para a emissão de debêntures simples ou conversíveis é, no particular, absolutamente irrelevante (e já era desde 1965!). Com efeito, chega-se exatamente ao mesmo resultado prático e econômico com a emissão de debêntures simples acompanhadas (sem ônus adicional) de bônus de subscrição, ambas por força de mera deliberação do conselho de administração, sem manifestação da assembléia geral. Assim, o que parece uma inovação, só o é em parte.

Poupando os leitores dos detalhes de referências legislativas, outra pergunta interessante: de onde teria saído a misteriosa referência a tipo das debêntures constante da Lei no. 6.404/76, frequentemente interpretada de forma absolutamente equivocada? Outra suposta novidade? Tampouco: o art. 25 da antiga lei de falências, de 1945, reproduzindo um conceito do Decreto no. 177-A, de 1893, esclarece que o tipo da emissão é a relação entre o valor nominal da debênture e o preço de emissão, gerando potencialmente o prêmio na emissão de debêntures tratado na alínea “c” do § 1º do art. 182 da Lei 6.404/76, na sua atual redação.

E, perguntarão os leitores que ainda restarem: qual a relevância deste último ponto (supondo que o autor tenha convencido os mesmos leitores da importância de um mínimo estudo da origem dos institutos do direito societário)?

A resposta é muito simples: se os artífices das reformas do direito societário não estudarem e conhecerem os antecedentes dos institutos que estão modificando, vão chegar a resultados absolutamente indesejados: o texto recentemente publicado do substitutivo ao Projeto de Lei 3.741, que pela enésima vez busca reformar a Lei 6.404/76, simplesmente revoga a referência a prêmio na emissão de debêntures.

Não vou discutir aqui, por falta de engenho e arte, já que se trata de questão estritamente contábil, se o valor recebido do subscritor das debêntures acima do principal da dívida deve ser lançado como reserva de capital, como hoje consta da lei, ou tratado como valor de apropriação diferida, a ser proporcionalmente amortizado no curso da vida da debênture, na mesma base em que são apropriados os juros, como propõe a justificativa.

No entanto, ao suprimir da lei o conceito de “prêmio na emissão de debêntures”, como a nova lei falimentar também suprimiu o conceito de tipo das debêntures (ouso supor, talvez com injustiça, que, no caso da lei falimentar, isto foi feito por desconhecimento do que representa o tipo de emissão), estar-se-á fazendo com que, se aprovado o dito Projeto 3.741 nos termos atuais, esta possibilidade de emissão de debêntures com “ágio”, para usar propositadamente um termo equivocado mas compreensível para os (aparentemente) leigos, supostamente deixe de existir.

Assim, num caso típico em que o rabo (a melhor ou mais moderna doutrina contábil) estará abanando o gato (a disciplina de conceitos seculares de direito societário, como tipo e prêmio), será indispensável um esforço interpretativo para sustentar que, ainda hoje, a companhia pode emitir debêntures e vendê-las por um preço superior ao respectivo valor nominal, reduzindo o seu custo de capital.

Sem referência específica, enfim, a este novo projeto (que tem pontos bastante positivos, decorrentes do avanço da ciência contábil nos últimos 30 e tantos anos), é preciso cuidado para que, a cada reforma, uma lei primorosa, em seu texto original, não vá ficando mais desconjuntada. De fato, comparando o texto original com o atual (com ou sem as reformas em andamento), tenho a certeza de que até os autores são os primeiros a reconhecer alguns avanços científicos e práticos de relevo. No entanto, alguns dispositivos introduzidos no curso do tempo desafiam, num primeiro momento, a compreensão do intérprete mais provido de boa-vontade. Este último, finalmente, acabará concluindo que tais inovações, a rigor, terminam é desafiando o bom senso e a tradição do direito comercial.

Esquecemo-nos todos os que nos dedicamos ao direito comercial que nada mais somos do que espectadores privilegiados de um espetáculo riquíssimo: a atividade econômica no regime capitalista. Sempre que pretendermos fazer mais do que simplesmente regulamentar por textos legais ou regulamentares aquilo que os comerciantes vêm criando nos últimos cinco ou seis séculos (com óbvio sucesso), reformando sem cessar aquilo que está funcionando bem, e sem olhar para trás para conhecer as origens do sistema vigente, arriscamo-nos a pôr a perder o resultado desse esforço criativo do empresário e deixar o mundo e o sistema jurídico pior do que estavam. Como sempre, a razão está em algum ponto (que obviamente o autor deste artigo não tem a menor pretensão de saber qual é) entre o misoneísmo e o espírito novidadeiro.


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