Entre leis e escolhas
Depois do êxito da auto-regulação, próximo passo é avaliar se práticas já testadas e bem-sucedidas devem ser incorporadas à legislação

 

ed27_p018-020_pag_3_img_001Diante de um quadro de estagnação que teve em 2003 seu ponto mais baixo, o mercado de capitais brasileiro viu no fortalecimento das práticas de governança corporativa o veículo certo para inspirar a confiança dos aplicadores e reverter a apatia daqueles tempos. A proposta dos níveis diferenciados de governança da Bovespa vingou, 15 companhias foram listadas em três anos no degrau mais elevado — o Novo Mercado — e outras 44 foram para os níveis 1 e 2, motivos que levaram o presidente do conselho da International Corporate Governance Network (ICGN), Christian Strenger, a citar a iniciativa como caso de sucesso numa entrevista concedida ao Wall Street Journal em outubro.

A aposta na governança se deu por uma empreitada auto-reguladora, baseada em critérios adotados e seguidos pelo próprio mercado, sem a ajuda da legislação. Mas seria este o modelo mais eficiente para a implementação de boas práticas? Ou algumas delas, já testadas e aprovadas, deveriam ser incorporadas à legislação em benefício de um mercado mais saudável?

Embora no Brasil a opinião dos especialistas seja em favor da auto-regulação, essa definição não é tão simples quanto pode parecer, ao menos pelo que se vê em outras partes do mundo. Foi justamente a reflexão sobre os dois modelos o tema de uma conferência realizada em Londres pela Câmara de Comércio Internacional (ICC), nos dias 18 e 19 de outubro, com a participação de diretores da OCDE, institutos de governança europeus e norte-americanos, grandes consultorias, bancos e instituições financeiras, além de representantes de países emergentes como África do Sul, Austrália, Egito, Rússia, Tailândia e Turquia. A discussão foi centrada em dois eixos principais: o equilíbrio ideal entre legislação e auto-regulação e os desafios de lidar com a multiplicidade de regras de governança para companhias de atuação global (ver quadro).


O TAMANHO DO ESTADO – Dimensionar o papel ideal para a ação governamental é um dos desafios mais críticos para a dosagem certa entre regulação e auto-regulação. Os defensores desta última alertam para a importância de impedir que o Estado, uma vez criado para proteger a liberdade dos mercados, se transforme inadvertidamente num Frankenstein que venha a destruí-la.

Segundo Paulo Cezar Aragão, sócio do escritório Barbosa Müssnich & Aragão Advogados, o Estado deve se concentrar em traçar as linhas básicas de atuação dos mercados, instituindo leis genéricas e as supervisionando. Ele pouco acredita na capacidade de melhoria trazida, de maneira isolada, por leis novas. Ao contrário, aposta no poder de sanção do investidor, que considera “melhor do que qualquer outra, já que determina a capacidade de a companhia captar recursos a custos mais atraentes”.

A experiência mostra também que esta participação tende a ser mais demorada e onerosa. Mas há quem alerte para a importância de se considerar a sua atuação no processo. “Não há dúvida de que o sistema ideal é o auto-regulador. Mas ele não funciona sem o Estado atrás da porta, com a garrucha na mão, pronto para coibir abusos”, afirma Luiz Leonardo Cantidiano, sócio do escritório Motta Fernandes Rocha Advogados e ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários.

Para o sócio da Dynamo Administração de Recursos, Cristiano Souza, o Estado não consegue acompanhar a velocidade com que o mercado se atualiza porque está, por sua própria natureza, mais afastado da dinâmica que marca o dia-a-dia dos agentes econômicos. Para ele, quanto mais detalhada for a legislação, mais rápido ela tenderá a se desatualizar e menos pró-ativo será o mercado para encontrar as soluções mais adequadas.

Para provar seu ponto, Souza compara os volumes dos contratos celebrados em países com legislações mais ou menos detalhadas. “No Reino Unido, temos contratos de 300 páginas para leis de apenas uma. As especificidades são regulamentadas caso a caso, entre as partes envolvidas”, comenta.

PARA CADA SISTEMA, UMA SENTENÇA – Outro ingrediente a pesar na busca da fórmula certa para as doses de regulação e auto-regulação é a tradição jurídica de cada país. Historicamente, observa-se que o sistema de implantação de boas práticas costuma ser estreitamente correlacionado ao sistema legal, mas, nos últimos anos, Brasil e Estados Unidos, principalmente, mostram que esta correlação nem sempre é determinante.

A preferência pela auto-regulação predomina onde o Direito consuetudinário é a raiz da legislação. Nesses países, as posturas adotadas costumam ser mais liberais do que as daqueles com leis baseadas no Direito romano (caso do Brasil). Aqui, o crescimento da auto-regulação deve-se à necessidade de, a um só tempo, preservar as companhias abertas existentes, estimular novas aberturas de capital e atrair investimentos. Nos EUA, onde o sistema legal é baseado no Direito consuetudinário, o desvio que levou à escolha de uma regulação mais dura é explicado pelo caráter de emergência que marcou a criação da lei Sarbanes-Oxley (SOX).

Voltando a fita da história norte-americana, vê-se que a SOX não é um momento isolado de intervenção regulatória nos segmentos privados. Em 1930, o New Deal (política de intervenção do presidente americano Franklin Roosevelt) foi adotado como medida de estabilização da economia, que vivia então a chamada Grande Depressão. Também foi a solução adotada em outros momentos de vulnerabilidade, como em 1944, quando o Tratado de Bretton Woods viria socorrer a política monetária internacional.

As diferenças culturais também se manifestam na forma como os países regem os sistemas de governança de suas empresas – uma evidência que ficou clara na diversidade de respostas ao choque de regulação dado pelos Estados Unidos por meio da SOX. Olhos postos na maior economia do planeta, outras nações se viram obrigadas a revisar as práticas de governança em vigor, temendo pela atratividade de seus mercados. A troca de experiências foi intensa, mas nem todas viram numa lei nova a melhor resolução. A maioria preferiu ficar com a auto-regulação, delegando aos agentes do próprio mercado a escolha das diretrizes que passariam a vigorar.

Comissões independentes se formaram em toda a Europa; Inglaterra e Canadá adotaram a prática do “comply or explain”, em que as companhias ora cumprem as novas regras, ora explicam ao mercado as razões da não-adesão. Códigos de governança foram ampliados, e até tiveram uma influência regional, como os King Reports sul-africanos, cujas normas de transparência e eficiência foram encampadas por boa parte dos países da África. No Brasil, o Novo Mercado e os segmentos diferenciados de listagem na Bolsa foram destaque. Enfim, para cada realidade, uma resposta diferente.

PRATICAR OU EXPLICAR? – A adequação dos modelos a cada cultura é uma tese que encontra eco entre os especialistas, especialmente quando se questiona a probabilidade de êxito de um sistema de “comply or explain” no mercado brasileiro.

José Guimarães Monforte, presidente do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), não acredita que tenhamos alcançado a maturidade necessária. Ele julga que nosso ambiente institucional não está culturalmente pronto. “Somos habituados a nos guiar por regras.”

O impacto potencialmente deletério que o modelo teria sobre as companhias presentes há mais tempo no mercado é o grande senão levantado pelo professor de finanças do Ibmec São Paulo, William Grava. Para ele, isso equivaleria a uma punição: “não é puxando o tapete de quem entrou no jogo quando as regras eram outras que se estimula a melhoria do mercado.”

No entender de Aragão, a proposta fere o princípio fundamental do Estado de Direito, em que a obrigatoriedade de fornecer explicações só pode incidir sobre situações previstas em lei ou num contrato que estabeleça padrões de comportamento. A necessidade de demonstrar as razões por não adotar práticas que são apenas sugeridas ultrapassa os limites da auto-regulação. “Trata-se de uma medida contraditória, moralmente coercitiva, um sistema de administração pelo vexame, que põe sua legitimidade em xeque”, avalia.

É difícil determinar com rigor a relação custo-benefício da regulação e da auto-regulação. Até porque a expressão maior da primeira opção, a Sarbanes-Oxley, ainda precisa de alguns anos para ter sua eficácia avaliada. No evento promovido pelo ICC em Londres, houve opiniões para todos os gostos. Algumas defenderam fortemente a regulação, enquanto outras apontaram para uma cooperação maior entre os órgãos reguladores dos diferentes países, a exemplo do que já fazem as entidades de auto-regulação.

A proposta é que se possa chegar o mais perto possível da existência de uma regra internacional dos mercados, que uniformize normas gerais e elimine os conflitos que hoje existem por conta de procedimentos distintos para uma mesma questão. Assim, seria alcançado um denominador comum que facilitasse os controles e abrisse espaço para a auto-regulação dar conta das peculiaridades de cada região. Mais um sinal da tendência favorável à moderação quando o ímpeto é de legislar.


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