Veneno para comprador
Adesões ao modelo uma ação, um voto e aumentos do free float levam companhias a lançar versões brasileiras das poison pills

Elemento fundamental das conspirações nas cortes européias, presente nos contos de fada povoando o imaginário de todos como sinônimo de morte, o veneno passa agora a ser dado em pequenas doses para os investidores brasileiros. Empresas que fizeram ofertas públicas de ações recentemente adotaram em seus estatutos sociais os chamados poison pills, mecanismos para evitar a compra de controle hostil na bolsa de valores. Esses dispositivos forçam o investidor disposto a arrematar o controle de determinada companhia a negociar previamente com seus administradores ou acionistas controladores.

A adoção do dispositivo – que nem sempre é letal para a transação e pode até ser benéfico para os investidores e a companhia – é fruto dos ganhos de liquidez e governança corporativa registrados recentemente no mercado de capitais brasileiro. À medida que se multiplicam as companhias que emitem apenas ações ordinárias, e assim conferem direitos e deveres iguais para os acionistas, cresce a probabilidade de um investidor adquirir parcela relevante dos papéis em circulação via bolsa e se tornar poderoso o suficiente para escolher conselheiros e influenciar, ou até mudar, a condução dos negócios. Se a companhia tiver o controle disperso na bolsa, a situação torna-se ainda mais dramática para o seu corpo gerencial e para os conselheiros. Ficam maiores as chances de um investidor sagaz fazer uma atraente oferta de compra das ações (tender offer) e arrematar a companhia – a chamada compra hostil, sem negociação com os conselheiros.

Mais vulneráveis, algumas companhias buscaram formas de se prevenir e adotaram o conceito das poison pills. Tropicalizadas, as pílulas lançadas por aqui visam não apenas prevenir tomadas de controle via mercado, mas, principalmente, evitar aquisições de parcelas expressivas do capital em bolsa. Seu efeito é praticamente obrigar o candidato a comprador a negociar com os conselheiros (e, no caso das empresas brasileiras, também com os controladores) se quiser viabilizar a aquisição. “Os poison pills dão igualdade de condições a todos os acionistas sempre que houver uma compra substancial de ações em bolsa”, explica Luiz Antonio de Sampaio Campos, advogado do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão.

Uma das primeiras empresas a adotar o dispositivo foi a IdéiasNet, no ano 2000. De acordo com o diretor de relações com investidores Rodin Spielmann, o objetivo foi evitar a concentração de uma grande parcela das ações nas mãos de um único investidor ou de um grupo coeso, o que poderia limitar a participação dos minoritários nas decisões da companhia e reduzir o free float das ações.

Ele explica que o dispositivo é acionado não só quando alguém adquire participação relevante na companhia por meio da compra das ações na bolsa, mas também quando dois ou mais acionistas que, juntos, detenham 25% do capital, celebram acordo de voto. Se um investidor compra 25% do capital, fica obrigado a estender a oferta de compra para 25% das ações dos demais acionistas pelas mesmas condições. “A cláusula complementa outros direitos, como o tag along, e está totalmente de acordo com as nossas práticas de boa governança”, diz ele.

Mais recentemente, Submarino e Natura adotaram esses dispositivos. O estatuto social do Submarino prevê que qualquer acionista que adquira ou se torne titular de 20% ou mais das ações da empresa deve fazer uma oferta pública para adquirir as demais ações em mercado. O preço ofertado deverá ser pelo menos igual ao valor de avaliação da companhia, apurado com base em critérios como o patrimônio líquido contábil, patrimônio líquido avaliado a preço de mercado, fluxo de caixa descontado, comparação por múltiplos ou cotações das ações. A revisão do valor ofertado é assegurada aos investidores que ficarem insatisfeitos com a avaliação.

Para uma empresa como o Submarino, que se originou de investimentos de fundos de participações (private equity), a venda do controle em bolsa não é um bicho de sete cabeças. Até mesmo porque se espera que esses fundos realizem novas ofertas secundárias futuramente para sair do investimento e embolsar os lucros. No entanto, a companhia quer se preservar de uma mudança de controle da noite para o dia que modifique o modelo de negócios e a forma de gestão. E evitar que determinados investidores adquiram parcela relevante das ações em bolsa e passem a ter mais representação de voto que os atuais acionistas. “Queremos que aquele que quiser ter o controle pague devidamente por ele”, disse à Capital Aberto uma fonte de mercado ligada à companhia. Consultado, o Submarino não atendeu ao pedido de entrevista por se considerar no “período de silêncio” após a oferta.

“A motivação do Submarino ao colocar o poison pill é salutar, pois visa dar estabilidade à administração e não inviabiliza uma transação via bolsa”, diz Mauro Cunha, diretor de investimentos da Bradesco Templeton Asset Management. Na oferta inicial, os papéis em circulação da Submarino atingiram 47,6% do capital total e, após o exercício do green shoe (lote adicional de ações ofertado pelos bancos coordenadores da operação), não divulgado até o fechamento desta edição, poderiam superar 50%.

No caso da Natura, o free float é de 26% e os controladores não manifestaram a intenção de realizar tão cedo novas ofertas secundárias de ações. Mas é praticamente impossível que algum dia, mesmo que a empresa chegue a ter o controle disperso, seja feita uma tomada do seu controle via bolsa devido ao prêmio que o investidor seria obrigado a pagar. Seu estatuto social prevê que qualquer acionista (excetuando-se os controladores) que se torne titular das ações representantes de 15% ou mais do capital social deverá realizar uma oferta pública para adquirir a totalidade das ações. O preço da oferta deverá ser a soma de um prêmio de 50% sobre o maior valor que for apurado de acordo com os seguintes critérios: a cotação unitária mais alta das ações no período de doze meses anterior à oferta; o preço mais alto pago pelo acionista adquirente, a qualquer tempo, para uma ação ou lote de ações da companhia; ou o valor equivalente a 12 vezes o Ebitda médio da companhia dividido pelo número total de ações, deduzido o endividamento consolidado líquido. Segundo o estatuto, o mecanismo visa dificultar tentativas de aquisição da companhia sem negociação com os atuais controladores e evitar a concentração das ações em poder de um grupo pequeno de investidores. Para Helmut Bossert, gerente de relações com investidores da empresa, as poison pills servem como proteção para os acionistas minoritários ao evitar a perda de liquidez.

Com o percentual de ações que possui atualmente em mercado, a Natura não corre o risco de ser alvo de uma compra hostil. Mas o fato é que, pela Lei das Sociedades Anônimas, investidores com 10% das ações ordinárias podem indicar um membro para o conselho de administração. Marcelo Mesquita, chefe de pesquisa do UBS, observa que, como o controle da empresa é compartilhado entre os três principais sócios, algum grande investidor com mais de 10% poderia se alinhar com um ou dois dos sócios.

Do ponto de vista das boas práticas de governança corporativa, contudo, as poison pills não costumam ser bem vistas pelo mercado. Dependendo da forma como a “pílula de veneno” é redigida, pode servir para o propósito de perpetuar no poder os administradores ou controladores de uma empresa com o capital disperso, além de impedir que os demais acionistas vendam suas ações por preços atraentes caso um investidor vá a mercado e faça uma oferta de compra dos papéis na bolsa. Mas no Brasil, ao menos por enquanto, as poison pills não parecem ter sido indigestas se considerados os preços elevados obtidos pelas companhias em suas ofertas iniciais de ações. “Não há nada errado com a poison pill se ela for divulgada de forma correta nos prospectos de emissões de ações. Cabe ao investidor analisar a informação e tomar sua decisão de investimento”, diz Gregory Harrington, sócio do escritório de advocacia Linklaters.

ESTABILIDADE PARA A GESTÃO – Apesar do nome, as poison pills nem sempre são tão venenosas assim. Ao contrário, elas podem funcionar até como vitamina para os preços das ações e para a empresa. Um dos seus efeitos positivos é obrigar que o investidor interessado em obter uma parcela expressiva do capital em bolsa ou mesmo o controle da companhia negocie com o controlador. O resultado pode ir desde um preço melhor para as ações até o impedimento à entrada de um comprador não alinhado com a estratégia e os valores da companhia.

Outro benefício de um poison pill bem desenhado é o de conferir estabilidade à administração, o que é especialmente importante se a companhia tiver o controle disperso. Por enquanto, a regulamentação brasileira não prevê particularidades para companhias com controle disperso (ou mesmo com controle definido, mas elevado free float) e não diz nada a respeito dos poison pills. A Instrução 361/02 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) prevê uma oferta pública para o aumento da participação do controlador, mas não faz a mesma exigência para as ofertas voluntárias de aquisição do controle via bolsa. Para Cunha, da Bradesco Templeton, seria importante que a regulamentação passasse a contemplar a possibilidade das poison pills. Dessa forma seria possível coibir o surgimento de cláusulas mal intencionadas e firmar condições para dar estabilidade à gestão de companhias com elevado free float em mercado.

O risco de compras hostis na bolsa brasileira é praticamente inexistente. Pelo menos por enquanto. À exceção da Eternit – que não tem poison pills em seu estatuto social –, e, talvez, do Submarino (dependendo do resultado final da oferta), não existem companhias com o controle disperso no mercado. No entanto, o aumento da dispersão do capital em bolsa observado nos últimos tempos já começa a ser um bom motivo para a adoção de poison pills. Especialmente no Brasil, onde a presença de acionistas nas assembléias é reduzida, investidores com elevadas parcelas do capital adquiridas em bolsa de valores podem passar a ter uma expressividade na votação desproporcional a sua participação no capital.

EFEITOS DO PRIVATE EQUITY – Para José Carlos Reis de Magalhães, sócio da Tarpon Investimentos, o aumento da dispersão do capital é uma tendência. Se a onda favorável continuar e os preços se mantiverem atraentes, novas ofertas primárias e secundárias devem ser realizadas, aumentando o free float dos papéis. Isso pode ocorrer, principalmente, nas companhias que contam com investidores de private equity. E podem chegar até à dispersão do controle, como visto no caso da Submarino. Por serem, em vários casos, concebidas sobre estruturas de controle pulverizado desde a origem, sem acordos de acionistas ou blocos definidos, as companhias investidas por fundos private equity tendem a protagonizar situações em que, no momento da oferta de ações para saída desses fundos, o controle passe a ficar no mercado.

Já nas companhias tradicionais, controladas por seus fundadores, essa tendência continua pouco provável, como se viu na Natura. “A própria adoção da poison pill pode ser um indício de que o controlador não quer dispersar o capital”, diz o advogado Marcelo Barbosa, do escritório Vieira, Resende, Barbosa e Guerreiro. Como o controle implica em poder econômico e político, poucos empresários encontram motivos para se desfazer dele. A falta de jurisprudência para essas situações e a regulamentação de alguns setores também não oferecem estímulos. No setor de transportes, por exemplo, o Estado exige a presença de um acionista ou bloco de controle com pelo menos 50% das ações ordinárias para oferecer uma concessão.

Para Cunha, da Bradesco Templeton, grande parte do empresariado brasileiro ainda não acordou para os benefícios da pulverização do capital. Além da possibilidade de alavancagem e de crescimento da companhia, há o aspecto da alocação do patrimônio do empresário. Se boa parcela de sua fortuna estiver atrelada a um único negócio, o resultado pode ser o receio de investir e o crescimento menor. Ao contrário, se dividir a companhia (e, por que não, o controle) com outros sócios, terá espaço para diversificar o seu patrimônio pessoal. A boa notícia é que as poison pills já podem ser consideradas um sinal de que, mesmo com barreiras pré-definidas, a dispersão do capital começa a ganhar adeptos.

Nos EUA, poison pills surgiram em reação às aquisições hostis

A adoção de poison pills por parte das empresas americanas teve seu auge nos anos 80, como uma forma de reação à onda de takeovers que varreu a bolsa. As ofertas de compras de ações por preços atrativos, chamadas de tender offers, sempre existiram, mas eram voltadas para pequenas companhias. Elas ganharam força e passaram a atingir as grandes corporações quando a administração do ex-presidente Ronald Reagan adotou uma postura de liberalismo com relação aos cartéis, permitindo operações que antigamente não seriam aprovadas.

Essa época foi também o auge das operações chamadas de leveraged buyout (LBO), nas quais um grupo de investidores ou diretores de uma empresa toma dívida para adquirir todas as ações da companhia, pagando bons preços pelas ações, mas muitas vezes fechando o capital e vendendo pedaços da companhia.

Em um oceano dominado por tubarões dispostos a abocanhar controles de empresas na bolsa, as companhias mais visadas trataram de se proteger e criaram cláusulas que forçassem investidores a negociar com os conselheiros, ou que dessem tempo para que fosse procurado um novo comprador.

Há várias modalidades de poison pills no mercado americano, conta Gregory Harrington, do escritório Linklaters. Em uma das formas clássicas, o dispositivo dá aos detentores das ações da companhia alvo a possibilidade de comprar ações da empresa que faz a oferta, por um preço bastante inferior ao que elas estão valendo na bolsa. Para isso, eles podem usar o próprio caixa da companhia alvo, reduzindo o seu valor. A operação também se torna menos atraente porque freqüentemente as companhias usam as próprias ações para fazer ofertas de compra hostis. Nesse caso, haveria uma redução no preço dos papéis em bolsa, diminuindo o seu poder de fogo para as aquisições.

Após a explosão do período de ofertas hostis, pipocaram questionamentos jurídicos. Hoje, já existe uma vasta jurisprudência sobre o assunto, diz Harrington. Atualmente, a maior parte das grandes empresas americanas adota algum tipo de poison pill, mas muitas abrandaram os dispositivos.

Uma forma mais leve prevê o estabelecimento de critérios para a troca de controle via bolsa. Nesse caso, o conselho estabelece regras que devem balizar esse tipo de operação, determinando que as ações sejam vendidas pelo mesmo preço para todos os investidores, que a oferta fique aberta durante determinado período e que tenha o laudo de um banco de investimento internacional.


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