O risco de seleção adversa ocorre quando compradores e vendedores estão em situação de assimetria informacional quanto à qualidade de um ativo. Essa assimetria coloca o adquirente em desvantagem perante o vendedor, e, como consequência, o conjunto de compradores em potencial comporta-se de maneira a nivelar os preços dos ativos por baixo, como um todo e sem se dar ao trabalho de distinguir o joio do trigo, evitando surpresas posteriores ao fechamento da transação.
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A seleção adversa é um risco real a que os participantes estão expostos mesmo nos mercados mais abertos e transparentes, como os de bolsa. Ele atinge de maneira especial os investidores que atuam, informal ou oficialmente, como formadores de mercado, provendo liquidez recorrente, especialmente avessos a serem atropelados por imprevistos que alterem as premissas que suportam sua atividade.
Com maior ou menor intensidade, o desenho estatal dos mercados secundários de vários países desenvolveu-se enaltecendo a segregação entre ambientes de negociação como ferramenta de mitigação do risco de seleção adversa. São vários os exemplos de funcionalidades concebidas para esse fim, que vão desde a criação, pelas bolsas, de um sarapatel de tipos de ordens voltadas a atender interesses heterogêneos de investidores, que com isso interagem de forma distinta com o livro central, até a efetiva segregação entre os fluxos de investidores institucionais (de “alfa alto”, considerados “tóxicos” por serem teoricamente mais bem informados) e os de varejo (de “alfa baixo”, supostamente menos sofisticados, descoordenados em seus interesses, por isso considerados “atóxicos”).
Há méritos óbvios, tanto para investidores quanto para emissores, na tentativa de neutralizar o risco de seleção adversa. Mas seriam eles proporcionais à complexidade do desenho que sobreveio com a introdução de tantos incentivos e ferramentas, ainda por cima espalhados em dezenas de ambientes de negociação? Os mercados podem ainda ser considerados justos e transparentes para todas as categorias de investidores, ou os “trade offs” terminaram distribuídos de forma desproporcional e assimétrica? Seriam as cotações públicas referenciais ainda confiáveis num cenário em que o varejo e o institucional não interagem mais entre si?
Prática controversa
É esse o debate que se acirra, agora, no mercado norte-americano, há 30 anos impulsionado pela premissa de que a arquitetura dos sistemas de negociação deve se ajustar à lógica de que é necessário proteger os investidores do risco de seleção adversa. Nem que para isso se termine por fragmentar o processo de roteamento de ordens e descoberta de preços do público institucional e do varejo – apogeu da blindagem à seleção adversa – facilitando-se a internalização e os arranjos de pagamento pelo fluxo de ordem (“payment for order flow”). Na compra e venda de fluxos de ordem, formadores de mercado conhecidos como “wholesalers”, ou seja, atacadistas, compram o estoque de ordens de corretoras dedicadas ao público de varejo, com o propósito de subsequentemente internalizá-lo e cruzá-lo contra sua carteira própria. Resultado: as ordens do varejo, cerca de 50% do volume total negociado com ações, nunca veem a luz do sol em ambientes transparentes.
O pagamento por fluxos de ordem é uma prática controversa, inclusive vedada, por exemplo, entre os países membros da Comunidade Europeia. Especialmente desde 2020, a pressão por mudanças ganhou fôlego também nos Estados Unidos, liderada pelo próprio Presidente da Securities and Exchange Commission (SEC). Praticamente desde que assumiu o cargo, Gary Gensler alardeia sua visão de que, no modelo atual, os investidores menores “don’t have the full benefit of various market participants competing to execute their marketable orders at the best price possible”. É justamente essa dinâmica que a SEC pretende rever a partir da esperada audiência pública lançada em dezembro, constituída por quatro propostas que, juntas, alteram de maneira figadal sua estrutura de mercado e, pela primeira vez, relativizam a tradicional ojeriza ao risco de ser adversamente selecionado.
Duelo de titãs
A principal mudança propõe que as ordens do varejo sejam expostas à concorrência em “open and fair auctions” realizados em bolsas ou ambientes de concorrência aberta, antes de serem internalizadas pelos atacadistas. Quem oferecer o melhor preço nesse leilão executa a ordem, e o “wholesaler” só pode seguir com a internalização se for superior no preço, ou inexistir interessados. A regra é complicada e, nesse momento, as consequências não são claras, mas existem alguns efeitos pretendidos óbvios.
Hoje, as corretoras de varejo têm uma visão holística do desempenho de seus atacadistas, negociando para deles obter a maior quantia em dinheiro possível pelo maior número de ordens, mas sem verificar se essa melhoria foi atingida em nível individual, ordem por ordem. Se a mudança vier a ser implementada, os “wholesalers” passarão a ter que brigam para oferecer melhorias em bases individuais, esforçando-se para vencer e incrementar o preço em cada negociação.
A SEC está convicta de que a mudança proporcionará uma quantidade total maior de melhoria de preços. Ela denominou de “déficit competitivo” o aumento potencial perdido ao longo da cadeia do sistema atual, estimado em 1,08 bips por dólar, ou 1,5 bilhão de dólares anualizados em 2022. Atualmente, os “wholesalers” levam vantagem em algumas negociações e desvantagem em outras, mas disputam entre si para proporcionar uma melhoria consistente no maior número de ordens. Há poucos atacadistas — no trio de gigantes responsável por mais de 90% dos fluxos comprados, o maior negocia mais do que a Nasdaq em volume de ações; somado ao segundo, a dupla supera os volumes da Nyse —, o que acentua a percepção de que o “déficit competitivo” seria privilégio de um grupo reduzido às custas da coletividade.
Em segundo lugar, o pagamento pelo fluxo de ordens meio que “criou” o fenômeno de gratuidade de corretagem para o varejo, ao permitir que uma receita fosse compensada pela outra. Sem ignorar o papel da corretagem zero para popularização do mercado acionário, a maior parte dos reguladores desconfia da sustentabilidade desse modelo de negócios, receando o incentivo que gera à monetização a partir de fontes de rentabilidade potencialmente nocivas, com destaque ao giro excessivo das carteiras, resultado do agravamento de vieses comportamentais.1 No intuito de preservar de alguma forma a modicidade de custos para o varejo, a proposta da SEC estabelece um mecanismo de compensação. Em vez de os atacadistas pagarem aos varejistas, as bolsas ou centros de negociação de concorrência aberta passarão a poder cobrar dos participantes do leilão um certo montante, rebatendo uma parte aos intermediários originadores do fluxo.
Fim do PFOF?
Explicitamente, não. Mas sob a nova proposta, é questionável que um “wholesaler” ainda se interesse em pagar pelo fluxo de uma corretora varejista. Se ele será obrigado de qualquer maneira a direcionar as ordens adquiridas a um leilão, pode terminar só conseguindo internalizar as ordens pelas quais ninguém se interessa — por exemplo, em ações menos líquidas. Hoje, é altamente lucrativo negociar ordens de varejo a um preço melhor que os praticados em bolsa, mas não é óbvio que esse patamar de lucratividade se manterá se os preços tiverem que ser superiores aos que quaisquer terceiros vierem a oferecer em um leilão aberto. A SEC reconhece que a proposta pode levar a um declínio significativo e até ao desaparecimento do PFOF,2 mas não se preocupa tanto antevendo como baixa a probabilidade de materialização de um efeito como esse.
E o Brasil nisso?
Nos últimos anos, acompanhamos com ansiedade e empolgação as inovações discutidas pela CVM com formidável nível de transparência e diálogo quanto a inúmeros atributos estruturantes de nosso mercado. Mais do que bem vinda, a formação de massa crítica sobre temas complexos e sem respostas fáceis como internalização, ofertas RLPs (“retail liquidity provider”), criação de segmentos de negociação apartados do livro central, para ficar com apenas alguns, serve de insumo para um debate como poucas vezes se viu.
O sistema atual é perfeito? Provavelmente, não. Qual seria a alternativa? Para tentar evoluir em uma tentativa de resposta devemos acompanhar como assuntos similares estão sendo enfrentados por outros países. Muitos deles lidam hoje com efeitos de escolhas feitas no passado. A finalidade principal dos mercados secundários é viabilizar o financiamento dos emissores e preservar a boa formação de preços. A microestrutura que suporta essas finalidades deve buscar trazer eficiências de forma isonômica para todos que negociam em bolsa — e sempre pode melhorar. Não às custas, porém, de converter em acessório o que deve ser principal.
*Aline Menezes é general counsel do Grupo UBS para Brasil e América Latina e integrante do Conselho de Supervisão da BM&F-Bovespa Supervisão de Mercados (BSM)
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