Há tempo que se discute o voto de qualidade do presidente do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), órgão colegiado e paritário – formado por igual número de conselheiros oriundos do setor público e da iniciativa privada – ao qual compete, entre outras atribuições, julgar os recursos interpostos contra as decisões condenatórias do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários em processos administrativos sancionadores.
Quando há empate nas votações, cabe então ao presidente, que é necessariamente um dos indicados do Ministério da Fazenda, exercer o voto de qualidade para resolver o julgamento. Dessa forma, o presidente vota duas vezes: a primeira com o seu voto ordinário e, a segunda, com o seu voto de desempate. Como se tem observado, no mais das vezes, o mecanismo é utilizado para confirmar a condenação dos acusados, o que tem suscitado intensa controvérsia.
Reviravolta do voto de qualidade no CARF
O voto de qualidade é igualmente adotado no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), encarregado de julgar, em segunda instância, os processos administrativos fiscais relacionados à exigência de tributos e contribuições sob a administração da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil. Assim como o CRSFN, o CARF é um órgão colegiado e paritário, formado por igual número de representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes. Quem preside as sessões de julgamento é obrigatoriamente um servidor da Fazenda Nacional e, se houver empate na votação, exerce o voto do qualidade, em regra, em favor do fisco.
A utilização desse mecanismo no CARF também causa polêmica. Em 2020, foi suprimido pela Lei n. 13.988, que passou a prever que, em caso de empate no julgamento de processo administrativo fiscal, a causa deveria ser resolvida em favor do contribuinte. Mas a medida perdurou por pouco tempo, até que fosse promulgada em 2023 a Lei n. 14.689, que, entre outras medidas, reinstituiu o voto de qualidade no âmbito do CARF.
Essa reviravolta poderia ser entendida como um sinal favorável à manutenção do voto duplo no direito brasileiro, dando conforto a que outros órgãos administrativos, notadamente o CRSFN, continuassem a empregá-lo contra os interesses dos particulares. Mas o exame atento da matéria afasta tal conclusão.
Primeiro porque a discussão no âmbito do CARF ainda não se encerrou. Logo após a promulgação da Lei n. 14.689, foi ajuizada ação direta de inconstitucionalidade contra os dispositivos legais que reintroduziram o voto duplo, que ainda aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal. Segundo porque há diferenças significativas entre os processos administrativos julgados pelo CRSFN e o CARF, que fazem com que o voto de qualidade, no âmbito daquele órgão, tenha repercussões jurídicas distintas e até mais gravosas.
Processo administrativo sancionador tem especificidades
O processo administrativo fiscal tem, principalmente, uma finalidade arrecadatória, visando exigir do contribuinte o pagamento do tributo que supostamente não foi recolhido no tempo devido. Já o processo administrativo de que cuida o CRSFN tem natureza sancionadora, voltando-se à imposição de penalidades aos infratores da lei. E disso decorrem duas diferenças marcantes.
Quando o contribuinte é derrotado no CARF por força do voto de qualidade, ele ainda pode recorrer ao Judiciário para rediscutir a matéria tributária, com vistas a obter o reconhecimento de que não é devido o tributo. Em contrapartida, no âmbito sancionador, prevalece o princípio de que não compete ao Judiciário rever o mérito das decisões administrativas, sendo o exame judicial restrito à ocorrência de eventual ilegalidade na condução do processo administrativo. Isso significa que, no âmbito do CRSFN, o voto de qualidade tende a ter um efeito definitivo e irreversível, já que, em princípio, de nada adianta ao acusado buscar o Judiciário para tentar reverter a condenação decretada pelo presidente do órgão.
Princípio do in dubio pro reo se aplica ao processo administrativo sancionador
Além disso, o processo administrativo sancionador submete-se a regime jurídico específico, devendo observar, em justa medida, os mesmos princípios que condicionam o exercício da pretensão persecutória do Estado no processo penal, pois também na esfera administrativa devem ser respeitados os valores de proteção das liberdades individuais. Nessa toada, cumpre destacar, aqui, a garantia do benefício da dúvida em favor do réu (in dubio pro reo), importante corolário do princípio constitucional da presunção de inocência, em virtude do qual, em caso de dúvida razoável quanto à comprovação da materialidade e da autoria do ilícito, deve o acusado ser absolvido.
Na esfera penal, há julgados dos tribunais superiores no sentido de que, se houver empate nos julgamentos realizados em órgãos colegiados, deve ser proclamado o resultado mais favorável ao réu ou investigado, em respeito ao princípio in dubio pro reo. Recentemente, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei n. 3.453, de 2021, que incorpora tal entendimento à legislação de regência dos processos penais.
O benefício da dúvida em favor do réu também se aplica aos processos administrativos sancionadores, como já reconhecido na jurisprudência dos tribunais superiores. Foi justamente com base nesse postulado que, em 2016, a Comissão de Valores Mobiliários decidiu, pela primeira vez, que, diante do empate de votos a favor e contra a procedência da acusação, o voto de qualidade do presidente da sessão deveria ser exercido para absolver o acusado. Afinal, se não foi formada maioria pela condenação, registrando-se o mesmo número de votos em um sentido como em outro, é porque houve no órgão colegiado, responsável pelo julgamento, uma dúvida razoável quanto ao acerto da acusação.
Voto de qualidade no CARF confirma: mecanismo não tem espaço no processo administrativo sancionador
Aliás, o entendimento de que, em caso de empate, não pode haver punição é confirmado pelas regras que foram instituídas na Lei n. 14.689 para o caso de se verificar empate na votação e o processo administrativo fiscal ser resolvido em favor da Fazenda Nacional, com base no voto de qualidade do presidente da turma julgadora. Em outras medidas, a lei estabelece que, nesse caso, ficam excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para fins penais. Ou seja, o voto de qualidade pode ser utilizado para assegurar a exigência do crédito tributário, mas não pode servir, em hipótese alguma, para punir o particular, seja na esfera penal, seja na esfera administrativa.
Disso se segue que o retorno do voto de qualidade no CARF, na forma prevista na Lei n. 14.689, não dá amparo argumentativo a que outros órgãos administrativos se utilizem desse mecanismo de desempate para resolver o julgamento de processos administrativos sancionadores. Em sentido oposto, a lei evidencia que, em sede punitiva, o empate na votação deve necessariamente conduzir à absolvição do acusado, em observância à garantia fundamental do benefício da dúvida em favor do réu.
Ainda que seja possível exercer o voto de qualidade para a resolução de processos administrativos não sancionadores (o que ainda será definido pelo Supremo Tribunal Federal), resta claro hoje, mais do que nunca, que, na seara punitiva, o seu emprego em desfavor do acusado não é admissível, por ser contrário à ordem constitucional. Mostra-se, portanto, imperativo rever a prática observada no âmbito do CRSFN de o presidente do órgão valer-se do voto de qualidade para confirmar a punição de acusados, até porque, nesse caso, a condenação se torna definitiva e sequer pode ser revista pelo Judiciário.
*Pablo Renteria ([email protected]) é sócio fundador do escritório Renteria Advogados e professor de direito civil e fundos de investimento da PUC-Rio. Foi diretor e superintendente de processos sancionadores da CVM.
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