Encontra-se em curso o processo de tomada pública de subsídios iniciado pela CVM para receber contribuições sobre o estudo intitulado “Internalização de Ordens”, elaborado pela Assessoria de Análise Econômica e Gestão de Riscos da Autarquia a partir da metodologia de análise de impacto regulatório. [1] O documento receberá comentários dos interessados até novembro desse ano.
O tema da internalização de ordens não é para os fracos. A prática, como se sabe, é vedada no Brasil desde pelo menos 2007, a partir da edição da Instrução 461, revogada em 2022 pela Resolução 135, que manteve a vedação. A proibição normativa, entretanto, não bastou para evitar que a discussão permanecesse viva todos esses anos, rondando a cena pública e os círculos especializados. Tampouco evitou que a proibição fosse efetivamente testada na prática, e de maneira pouco ortodoxa, como se viu dos eventos que precederam a criação do retail liquidity provider (“RLP”)[2]. E, em mais um testemunho da relevância da matéria, basta lembrar que a própria audiência pública que antecedeu a Resolução 135, embora não tendo a internalização como um dos pontos de discussão, também não impediu que ela fosse recordista em sugestões do mercado. Mal a tinta secou depois da publicação da norma, cá estamos nós, novamente, a debater a internalização.
A tomada de subsídios em curso pela CVM, muito oportunamente, nos dá as ferramentas e a chance de refletir sobre se há algo realmente quebrado ou funcionando mal em nossos mercados, e que só possa ser remediado com a internalização de ordens. Qual problema estamos tentando resolver? Não havendo um problema, estaríamos criando um? Quais os benefícios sociais pretendemos colher ao dar esse passo? A quem importa que a internalização seja ou não possível, e quais os interesses estão em jogo? Essas são questões profundas, é preciso recuar no tempo para ganhar uma necessária perspectiva de entendimento antes de debatê-las.
Era uma vez: as bolsas
A história super abreviada das bolsas de valores é simples. Alguns corretores se reuniam em um local – um café, em feiras, em um porto, ou embaixo de uma árvore – para negociar ativos. Coletivamente, estabeleciam regras para funcionamento e se juntavam em uma associação sem fins lucrativos. Como nenhum corretor precisava lucrar com a manutenção do local – sua remuneração sempre consistiu na cobrança de corretagem e spreads – os custos eram compartilhados e fixados em patamar apenas suficiente para bancar as despesas de funcionamento do local. Os corretores eram, ao mesmo tempo, donos e administradores da associação, além de usuários com direito de acesso exclusivo ao recinto de negociação.
Séculos depois, por razões várias, as bolsas abandonaram a forma associativa, transformaram-se em entidades com fins lucrativos – se desmutualizaram, como se diz no jargão – tornando-se, em sua maioria, companhias abertas. Os corretores perderam os privilégios associados à sua condição anterior: venderam suas participações e deixaram de ser donos, afastaram-se do processo decisório e deixaram de ser administradores, e permaneceram como detentores do direito de acesso aos ambientes de negociação apenas caso cumprissem com os requisitos estabelecidos para isso.
Em vários países, inclusive no Brasil, estamos assistindo a uma tendência de re-mutualização, um retorno àquele momento inicial. Intermediários importantes vêm de novo se mobilizando para constituir novas bolsas ou apoiar terceiros com esse propósito, e com isso competir com as incumbentes das quais, um dia, foram membros. Isso se dá por várias razões, mas é mais ou menos generalizada a insatisfação com os custos de transação em bolsa, percebidos como excessivos. Dito de outra forma, ser pago para negociar tem parecido melhor, para muitos intermediários, do que pagar uma entidade administradora de mercado para isso.
Os internalizadores
A internalização importa para a narrativa acima porque, na prática, viabiliza que os intermediários, sem serem obrigados a constituir um mercado organizado, compitam por ordens atualmente dirigidas de forma única ao livro central, desviando-as para execução em seus sistemas internos, ou seja, internalizando-as.
É frequente descrevermos mercados de ações como anônimos, dado que os comitentes finais não são visíveis no livro, sendo representados pelos intermediários que detêm a prerrogativa de acesso aos ambientes de negociação e são responsáveis por definir que tipo de acesso querem conceder aos seus clientes (DMA ou mesa). Em jurisdições onde a internalização é permitida, contudo, essa afirmação é falsa, pois os provedores de liquidez – a carteira própria do intermediário ou high frequency traders, nos países em que é possível repassar o fluxo internalizado para terceiros – estão cientes, probabilisticamente, do tipo de sua contraparte dependendo do ambiente em que transacionam. Isso porque, na prática, a internalização acaba por segmentar os perfis de ordem entre varejo, cujo fluxo é internalizado, e o institucional, que permanece operando em mercados transparentes.
Na dinâmica de mercados centralizados de bolsa, investidores de diferentes tipos negociam todos juntos, não importando seu grau de informação, sofisticação, ou suscetibilidade ao risco de seleção adversa.[3] A decisão de permitir a internalização e, com isso, segregar os investidores não-informados, tipicamente o varejo, dos informados, em geral o buy side ou hedge funds, embute um desafio sobre como se distribuem os subsídios cruzados entre esses dois grupos, ou seja, sobre como eles compartilham o componente de seleção adversa embutido nos spreads.
Mais concentração em um ambiente de negociação favorece os informados, que conseguem extrair valor do seu esforço de análise focada nos fundamentos dos emissores – verdadeiro artigo de luxo nos dias atuais, em que os mercados públicos encontram-se dominados por fluxos passivos e arbitradores ultra-velozes. Mais segregação entre vários ambientes de negociação favorece os referidos provedores de liquidez e, pelo lado bom, viabiliza que eles a ofereçam de forma mais barata – em alguns casos, inclusive, supostamente gratuita – ao varejo. Mas isso encarece as negociações dos informados, que ficam mais expostos à seleção adversa ao perderem a oportunidade de interagir com o fluxo de ordens internalizado, e consequentemente reduz os incentivos à sua atividade de pesquisa de informações, com impactos óbvios em toda a cadeia de valor. Atentos a esse risco, na audiência pública que precedeu a edição da Resolução 135, alguns dos mais conhecidos gestores fundamentalistas deixaram de lado sua habitual discrição para expressar preocupações valiosas com a negociação de grandes lotes,[4] tema contíguo ao da internalização.
As perdas incorridas pelos investidores informados podem ou não estar compensadas pelo repasse de ganhos ao varejo. Se tais repasses se resumirem à melhoria de preços nominal ou inexistente e à isenção de corretagem, as perdas decorrentes da erosão da capacidade informativa dos preços, do desestímulo ao investimento fundamentalista e dos efeitos na atratividade dos mercados secundários para os emissores, podem não estar nivelados de forma simétrica. Assim, a principal questão de política pública, aqui, é saber se os ganhos decorrentes do aumento da liquidez e volume justificariam a redistribuição de benefícios, ou se, ao invés, revelariam uma busca por rendas garantidas pelos provedores de liquidez, caso em que é importante que a regulação atue para reequilibrar os interesses em discussão.
Os emissores
Bolsas de valores são mercados de dois lados. Além da ponta da demanda dos investidores, tratada acima, temos, na ponta da oferta, as companhias que pretendem se tornar públicas. É função tradicional das bolsas a formulação de regras de listagem e manutenção de estruturas para monitorá-las. Tais atividades reúnem características de bem público. Elas melhoram a qualidade do “produto” ação, complementam o acompanhamento do regulador estatal, suprem deficiências percebidas na legislação cogente (p.e.x, em temas de governança corporativa e proteção aos minoritários), e até mesmo avançam temas da “agenda ESG”, como p. ex. metas diversidade.
A permissão à internalização promove uma ruptura do vínculo natural entre os custos de regulação de emissores e o valor passível de ser auferido com a negociação de suas ações pelo mercado onde ocorre a listagem. Isso porque as informações divulgadas pelas companhias passam a estar disponíveis para todos, que usufruem de forma irrestrita dessas propriedades, embora não tenham contribuído para o resultado. Trata-se de uma hipótese de efeito carona, onde os benefícios produzidos são gozados coletivamente, mas o custo da atividade recai apenas sobre um dos participantes, no caso, a bolsa escolhida pelo emissor para listar suas ações.[5]
A aludida ruptura de vínculo é um dos aspectos do negócio das bolsas, não se discute, por óbvio, que é do jogo que possa vir a ocorrer. O mundo vive um período de experimentação com o surgimento de novas bolsas com propostas de negócio as mais distintas,[6] e é promissor que, finalmente, isso esteja acontecendo também no Brasil, como tem reportado a mídia especializada.
Mas é de se notar que esses novos participantes têm se sujeitado aos requisitos estabelecidos pela norma para se registrarem como mercados organizados e apresentam propostas de valor que vão além de “sou um computador onde você pode negociar suas ações”. A afirmação pode soar reducionista, mas, sem estar regulado como um mercado, submetendo-se como tal à supervisão estatal e incorrendo nos custos e ônus regulatórios para tanto, essa seria uma forma de enxergar a atividade do internalizador. Por tal razão, nas jurisdições onde a internalização é permitida, há um inequívoco movimento reformista de redução das assimetrias regulatórias, calcado no diagnóstico de que a piscina de receitas da indústria se pulverizou de forma excessiva, sem a verificação de benefícios correspondentes. E, mesmo em tais jurisdições, a permissão à internalização é cercada de cautelas para garantir a estrita observância do dever de melhor execução.
Quebrou, conserta?
Nossa compreensão do funcionamento dos mercados hoje se beneficia do contínuo desenvolvimento da pesquisa empírica de suas microestruturas, graças à abundância de informações, inexistentes até outro dia, sobre comportamento de preços, ofertas e negócios, e de ferramentas capazes de processá-las. Tais estudos oferecem perspectivas únicas para entender como os mercados funcionam, suas propriedades matemáticas e incentivos.
Isso não significa, porém, que suas conclusões possam ser dissociadas das características estruturantes do meio em que foram elaborados. Inferências sobre comportamento de spreads nas negociações com ações em mercados desenvolvidos, profundos, de liquidez e volumes expressivos, podem não ser aproveitáveis para nossos mercados. Uma eventual deficiência nas cotações públicas de ações em mercados desenvolvidos, por mais preocupante que possa ser – e não resta dúvidas que tem sido item prioritário de discussões – talvez não tenha potência para rivalizar com outras variáveis que fazem desses países destinos inevitáveis na atração de emissores e na disputa por capitais.
Afinal, a permissão à internalização seria um bom caminho para o Brasil, em particular na negociação com ações, onde a relevância social dos mercados secundários atinge seu ápice? O Brasil é uma economia emergente, concentradora de empreendorismo e em fase de criação de riqueza e desenvolvimento. Na sua essência mais pura, os mercados regulados viabilizam a captação de recursos por companhias que precisam crescer; são plataformas para desenvolvimento de opções de financiamento diversas do crédito bancário. Não por acaso o mandato legal da CVM contém expressamente a atribuição de “estimular as aplicações permanentes em ações do capital social de companhias abertas sob controle de capitais privados nacionais” (art. 4º, inc. II, Lei 6.385/76). Os sinais informacionais gerados pelas cotações de empresas brasileiras em mercado secundário são importantes para elas, seus investidores, credores, e para os demais emissores em potencial e para nossa economia real. É importante preservar a integridade desses sinais informacionais.
O sistema atual é perfeito? Provavelmente, não, e sempre há o que se possa melhorar. Debater a internalização de ordens no mercado de ações não se restringe a um problema acadêmico. Não faltam exemplos de países que hoje tentam lidar com escolhas feitas no passado em relação às suas microestruturas de mercado. O reparo aqui não é suficientemente barato de forma a que, se quebrar, conserta. Principalmente se for para consertar o que pode não estar quebrado.
[1] “Internalização de ordens – estudo a partir da metodologia de Análise de Impacto Regulatório – AIR”, Assessoria de Análise Econômica e Gestão de Riscos (“ASA”), AIR parcial, maio/2024. Edital de tomada Pública de Subsídios ASA/CVM nº 02/24. Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/2024/cvm-lanca-edital-para-tomada-publica-de-subsidios-ao-estudo-parcial-de-air-sobre-internalizacao-de-ordens. Acesso em: 13.07.2024.
[2] Internalização, pp. 30-32.
[3] “Um novo olhar da SEC para a seleção adversa”, 12.02.2023.
[4] Cf. manifestações de Absoluto Partners e Dynamo; e do denominado Grupo de Gestores.. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2019/sdm0919.html. Acesso em 13.07.2024. “Quão grande será o lote da ‘dark pool’ brasileira?”. 13.08.2022.
[5] Mais uma hipótese, além da tratada no estudo da CVM, cf. “Internalização …” p. 59
[6] Como exemplos, temos: a Investors Exchange – IEX, criada com o propósito de mitigar os efeitos do high frequency trading e retratada pelo jornalista Michael Lewis no célebre Flash Boys; a Long-Term Stock Exchange – LTSE, focada na criação de valor no longo prazo e em proteger as companhias das pressões de resultados trimestrais; a Members Exchange – MEMX, focada em promover maior eficiência operacional e reduzir custos; e a recentíssima Texas Stock Exchange – TXSE, cuja proposta de valor conjuga barateamento de taxas com alguma proteção “anti-woke”. No Brasil, pretendem concorrer com a incumbente a ATG, que pretende começar com a negociação de ações, fundos imobiliários, índices e aluguel de ações; e a A5X, focada no segmento de derivativos e futuros.
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