Se finais de ano costumam ser momentos alvissareiros para balanços, o de 2021 mostra-se ainda mais propício no caso do mercado de capitais. Afinal, eleito em 2018 sob a promessa de uma transformação liberal no plano econômico, apenas neste ano os indicados pela atual gestão do Executivo federal passaram a representar a maioria do colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). E o impacto já é perceptível.
Tome-se a atribuição que lhe confere a alcunha de “xerife do mercado”: o exercício do chamado poder de polícia. Aqui não se trata apenas de determinar qual a punição aplicável às infrações apuradas, mas definir as próprias condutas passíveis de sanção. Neste ano, foram julgados casos emblemáticos tratando da atuação do conselho de administração de companhias abertas e, mais especificamente, no que consistiria a violação do dever de atuar com “diligência.”
Os deveres dos administradores, é bom avisar, compreendem um dos temas mais obscuros da lei acionária. Para começar, bastaria apontar que a lei propõe resolver os problemas do caso concreto aplicando a mesma métrica para diretores e conselheiros de administração — ou seja, administradores com atribuições e vivências bastante diversas dentro da gestão de uma sociedade. Como se não bastasse, a lei não indica, na grande maioria dos casos, comportamentos específicos como sendo ilegais. Antes, são eleitos alguns modelos de comportamento bastante vagos, como diligência, cuidado, lealdade.
Essa ambiguidade confere ao órgão regulador um papel pivotal. Diferentemente do que o leigo imagina, o trabalho da autarquia não se assemelha ao de um porteiro que decide, com base em uma análise “cara-crachá”, quem pode entrar no edifício. Mais correto é compreender que a lei indica uma régua com marcações borradas, cabendo ao regulador fazer as indicações precisas da linha que separa a licitude da ilegalidade. Em outras palavras, atribui-se à CVM uma larga discricionariedade na definição do que significa, por exemplo, atuar com “diligência” — se isso é mais ou menos exigente do que a atuação do “homem médio” (outro padrão de conduta), como “diligência” se correlaciona com a doutrina do business judgment rule e outras discussões quase esotéricas.
Nesse ambiente normativo, o colegiado debruçou-se em 2021 sobre três casos paradigmáticos, tratando da pergunta: qual o grau de diligência exigível de um conselheiro de administração na gestão de uma companhia aberta?
Execução de projetos
No primeiro julgamento, envolvendo a Petrobras, analisou-se qual seria o comportamento exigível do conselho de administração ao fiscalizar a execução de um projeto relevante para a companhia e orientar o trabalho da diretoria. No caso concreto, foi apresentado ao órgão a situação de um investimento cujos custos teriam extrapolado — em muito — as estimativas iniciais. Depois, veio a se saber que havia um forte componente de corrupção na formação do respectivo dispêndio. Além disso, a continuidade do projeto seria incompatível com a política de redução de custos então vigente e aprovada pelo próprio conselho para investimentos da mesma natureza. Entretanto, os dados disponíveis não evidenciavam quaisquer questionamentos do órgão de governança quanto aos fatos acima narrados ou mesmo alguma orientação consistente com o problema que lhe foi apresentado.
De acordo com o posicionamento que prevaleceu na autarquia, não seria por que inexistiram registros formais da atuação do órgão que se poderia presumir a falta de diligência dos administradores no exercício de suas atribuições. Mais ainda, mesmo que não tenha havido qualquer atuação do órgão ao ser apresentado à situação do investimento, não se poderia com isso concluir pela falta de diligência no exercício de suas atribuições, uma vez que não existiria estatutariamente uma obrigação legal de atuar pelo simples fato de ser um órgão fiscalizador e de orientação da atuação da diretoria.
Laudo de avaliação
No segundo caso*, tratando da Coelba, analisou-se qual o grau de diligência exigível do conselho de administração ao submeter à assembleia geral um laudo de avaliação para justificar o preço de emissão de ações em aumento de capital. Segundo a área técnica da autarquia, o laudo, produzido por um avaliador externo e submetido à assembleia geral pelo conselho de administração, continha premissa atípica e inconsistente com aquela usualmente adotada pela própria companhia. Como resultado, o laudo promoveria a diluição injustificada dos acionistas que não acompanhassem o aumento de capital.
Leia a coluna de Raphael Martins aqui
De acordo com o entendimento do colegiado, na ausência de elementos que comprovem uma intenção dos administradores de macular o laudo de avaliação, em benefício próprio ou de terceiros, não caberia à autarquia presumir que a decisão dos administradores deixou de ser desinteressada. Da mesma forma, a existência de “pontos de atenção” no laudo de avaliação não seria suficiente, por si só, para obrigar um comportamento diverso dos administradores, estando o seu dever de diligência substancialmente atendido ao terceirizar a elaboração do laudo para uma empresa especializada.
Outorga de ações
Finalmente, em caso que diz respeito à B3, a autarquia apreciou a diligência do conselho de administração na fiscalização da execução de um plano de outorga de ações, cuja implementação tinha sido delegada a um dos diretores. Na situação concreta, verificaram-se desvios na implementação do plano, tanto no que se refere aos contratos individuais celebrados com determinados beneficiários, quanto no tratamento de situações particulares e relacionadas às hipóteses de vencimento antecipado.
Como nos casos anteriores, tendo em vista a delegação da atividade da implementação do plano a um dos subordinados, não seria exigível a fiscalização “ato a ato” do diretor para verificar se a medida foi razoável. Considerando a “inexistência de sinais de alerta”, não seria razoável esperar que o conselho realizasse uma “fiscalização mais atenta e assídua” da implementação do programa, não sendo exigível do órgão investigar “toda e qualquer informação submetida à sua avaliação.”
Com a ressalva de que cada julgamento é a decisão sobre um caso concreto e não um modelo abstrato de comando, a análise do conjunto de julgamentos neste ano indica clara tendência de o regulador não se sentir confortável com o papel de policiar o grau de diligência da atuação do conselho de administração. Sob outro ângulo, se o conselho de administração fosse uma competição de salto em altura, o regulador colocou o sarrafo regulatório o mais próximo possível do chão. Esperando que os saltadores não tropecem na barreira, a má gestão da companhia aberta deve ser punida pela mão invisível do mercado.
Raphael Martins é sócio do Faoro Advogados
(*) O colunista representou o interesse de reclamantes no processo envolvendo a Coelba
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