Diversos assuntos contábeis estão intimamente ligados à pandemia. Vamos comentar alguns deles neste texto.
Primeiramente, parece estar havendo uma paúra completa quando se lembra dos impairments. Mas tenho comentado frequentemente, e muitos auditores estão nessa mesma linha, que não é hora para apavoramento — afinal, as incertezas são a única certeza no momento. E impairment envolve algum mínimo de horizonte claro.
Para os balanços e informes trimestrais de março em diante (e ainda bem que os ITRs desse mês ficam para junho), realmente há que se tratar disso. Lembrando, no entanto, que impairments de recebíveis e de estoques miram, sim, o curto prazo; já os de imobilizado, de intangíveis e alguns outros não miram o curto, mas sim o longo prazo.
Será que os efeitos da pandemia vão durar cinco, dez ou mais anos? Perdurarão a ponto de o valor presente das chances de recuperação desses ativos provocar necessidade de impairment?
A única coisa de que tenho certeza é que determinados estoques perecíveis até já foram baixados. E talvez provisionamentos por conta de recebíveis de quem realmente já se sabe que não terá qualquer chance de adimplência, mesmo que o devedor queira, serão imprescindíveis.
Mas muito cuidado com o desespero, por favor.
Outro ponto importante: legislações ainda saem e notícias mais ainda sobre renovações de prazos, de contratos, de rompimento de equilíbrio financeiro, de fatos anormais supervenientes e imprevisíveis etc etc. Problemas sérios sim, mas não se pode colocar o carro na frente dos bois (talvez a maior parte dos leitores nem saiba o que é isso) e já se promover ajustes, reconhecimentos de perdas ou alterações de valores de ativos e passivos com açodamento — talvez até enganosos. À medida que as coisas forem ficando mais preto no branco haverá um mínimo de segurança para os devidos registros contábeis em muitos desses pontos. Cabe ressaltar o Ofício Circular CVM/SEP/SNC nº 03/2020, do dia 15 de abril, muito pertinente e ponderado, voltado basicamente às operações de crédito.
E o que falar de certos contratos de arrendamentos, aluguéis e quejandos de longo prazo? Estavam fora do balanço, entraram no ano passado e muitos terão que já ser baixados?
Já vimos, e não só no Brasil, discussões a respeito desses contratos.
Mais um aspecto: alguns bancos, principalmente europeus, totalmente avessos à volatilidade nos lucros, estão fazendo força para voltar ao reconhecimento das perdas nos recebimentos apenas quando “quando incorridas”, como era até alguns anos atrás. Nada de “perdas esperadas”. Para depois voltar novamente?
Continuando, há que se provisionar os prejuízos iminentes dos próximos meses até que as atividades consigam voltar perto do que se poderia chamar de normal? Ou pelo menos os contratos que possam passar a ser onerosos (muito provavelmente se gastará mais para cumpri-los do que haverá de benefícios deles)? É claro que neste último caso a resposta é positiva, mas desde que o ambiente já esteja razoavelmente seguro para um dimensionamento minimamente confiável.
Provisões para contingências relativas a perdas cujos fatos geradores ainda não se efetivaram poderão ser, por prudência, constituídas desde já? Vale lembrar que há regras para isso, não pode haver arbitrariedade também nesse campo.
Mais um assunto que em si não é contábil, mas que tem reflexos dessa natureza: redução e postergação de dividendos mínimos e excedentes ao mínimo. Ah, as reservas para contingências e as reservas especiais (situação financeira incompatível com a distribuição) parece que nunca foram tão visitadas. Se for o caso, qual delas é a mais adequada para cada situação? Estão muito próximas uma da outra hoje, mas há algumas diferenças inclusive nos aspectos formais (decisão da administração, da assembleia, parecer de conselho fiscal, se existir etc).
E um ponto que vem sendo debatido muito fortemente, inclusive no exterior, diz respeito aos riscos de continuidade das operações da entidade. Novamente, muito cuidado: o prazo para essa análise realmente é curto, um ano. Mas não é de três meses. Assim, não se pode também deixar levar por fatos fortíssimos recentes que poderão dar a entender que a recuperação será impossível; há que se ter, de novo, os pés no chão. É claro que talvez uma determinada empresa média de cruzeiros marítimos venha, de fato, a ter condições por demais difíceis de sobrevivência, mas será essa a regra para todo o mundo? O pessimismo exagerado é tão danoso à capacidade informativa da contabilidade quanto o otimismo exacerbado.
Quase finalmente, as notas explicativas: estas sim precisam estar cercadas de todas as possíveis (não prováveis) alterações relevantes do patrimônio em função dos riscos atuais e futuros. Essa é a grande arma para quem quer bem informar investidores, credores, sindicatos, sociedade em geral. Lá realmente é obrigatório que se deixe o leitor avisado de todas as possíveis consequências que o horizonte de hoje não permita ver com segurança.
E, por último, mas não menos importante, o relatório da administração é o local em que se pode cuidar de todos esses pontos (sem eliminar as notas explicativas pertinentes) de forma mais livre, mais narrativa, com utilização inclusive de cenários diversos possíveis.
Em suma: não nos afobemos, mas também não pensemos que vamos ter pelo menos alguns trimestres e o final do próximo exercício parecidos com os anteriores. Trabalho para todos os envolvidos na gestão, na contabilidade, na auditoria e para os usuários das demonstrações contábeis. Mas com os pés no chão.
P.S.: Escrevo este texto logo depois de receber a notícia da morte de Alfried Ploeger, gestor, empresário, presidente da diretoria e do conselho da Abrasca, companheiro há décadas, inclusive do CPC-Comitê de Pronunciamentos Contábeis. Sincero, defensor árduo de suas ideias, mas sem jamais deixar de ouvir o outros e, acima de tudo, um amigo. Vá em paz!
*Eliseu Martins ([email protected]) é professor emérito da FEA-USP e da FEA/RP-USP, consultor e parecerista na área contábil. Para mais detalhes técnicos, consulte o blog: pensamentocontabil.com.br.
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