Podemos olhar a atual crise política em que o Brasil se encontra — que provavelmente consegue, com seus efeitos diretos e indiretos sobre a sociedade e a economia, ser mais mortal que a pandemia e pior que a recessão — e pensar que ela advém apenas de uma inabilidade política do presidente e de um saudosismo das “benesses” que o presidencialismo de coalisão deixou nos demais poderes da República.
Pois bem. Convido o leitor a uma outra perspectiva, que me parece bem mais razoável e talvez possa explicar o motivo de a crise ser mais contundente agora do que em outros momentos nos quais o populismo político-eleitoreiro era um terreno mais fértil para tais conflagrações — como, por exemplo, a reforma da previdência.
Para construir meu raciocínio, precisarei remontar à pré-eleição, momento emblemático em que Bolsonaro, de maneira brilhante, deixava a cargo dos potenciais ministros ou de técnicos que o apoiavam toda e qualquer questão de natureza específica. Foi, inclusive, vítima de chacotas dos adversários, que chegaram a apelidar Paulo Guedes de “posto Ipiranga”, em analogia a uma propaganda que diz que tudo passa pelo estabelecimento. Esse modelo de liderança se fez presente no início do governo, também marcado pelo mesmo despreparo político do presidente e de sua peculiar tosquice — que junto com uma bandeira anticorrupção mostrou-se mais vitoriosa que a plasticidade e a ludibriação do poste. Ou seja, todas as mazelas atribuídas ao “estilo” de Bolsonaro sempre estiveram presentes, não se nota nada mais exacerbado agora do que no passado. Pelo contrário: verificamos hoje uma flexibilização e uma aproximação nunca dantes vista com o chamado “centrão”.
Eu arriscaria até a afirmar que foi justamente esse estilo tosco e não tradicional do presidente que o habilitou a levantar a bandeira anticorrupção, combatendo o lado nefasto do presidencialismo de coalisão, com propriedade e eficácia. E diria mais: provavelmente um perfil mais diplomático e com dinâmicas políticas mais eficazes não teria colhido os mesmos resultados nesse campo historicamente tão viciado de nossa política.
Porém, já eleito e na medida em que o tempo foi passando, Bolsonaro, humanamente embebido pelo poder, foi perdendo o autoconhecimento e mudando drasticamente seu estilo de liderança. Foi deixando de ser delegador e passando a ser centralizador; vem saindo da posição de maestro para tocar os instrumentos de maneira irresponsável e equivocada. Jogou fora a própria posição de líder que conseguiu construir de maneira tão singular e autêntica para guerrear em trincheiras sem a habilidade técnica pertinente aos enfrentamentos. Com isso, vem fritando seguidamente membros de sua equipe — lembro inclusive que o próprio Guedes esteve sob intromissões e ataques enfraquecedores logo antes da saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça. Esse processo de fritura, feito com a soberba de quem não apenas se embriagou com o poder mas deixou de se olhar no espelho e se enxergar de maneira genuína (traço determinante para chegar aonde chegou) culminou com a saída de Moro, certamente a pessoa mais popular do País na atualidade e símbolo da bandeira anticorrupção que levou Bolsonaro ao poder supremo da República.
Sem precisar me estender narrando os demais fatos plenamente conhecidos de inabilidade de liderança do nosso presidente, gostaria de concluir com a reflexão inicial: não vejo a atual crise política como um estressar da agenda de acabar com o “toma-lá-dá-cá” do presidencialismo de coalisão ou do estilo tosco de Bolsonaro. Noto que os aspectos tão vitoriosos em sua campanha e em seu início de mandato estão se volatilizando no nítido desespero de quem quer se manter no poder mais que pensar o Brasil.
Infelizmente, a fortaleza que emergiu de sua fraqueza — uma liderança horizontalizada e partilhada sabiamente com mentes técnicas brilhantes — parece esmorecer diante do brotar rígido de um ultrapassado estilo de comando e controle, que o afasta de sua equipe, do povo e de sua bandeira anticorrupção, para retroceder às mais nefastas dinâmicas do presidencialismo de coalisão e aproximá-lo do estilo que tanto criticou. Bolsonarismo e lulopetismo nunca estiveram tão próximos tanto na política quanto na cegueira de seus apoiadores. Já que a crise é de liderança e não de habilidades políticas, precisamos de líderes democráticos e contemporâneos para sairmos de nossa histórica crise política e avançarmos social e economicamente como nação.
*Alexandre Fialho ([email protected]) é sócio-fundador da Filosofia Organizacional, conselheiro de diversas empresas, mentor de grandes líderes e professor
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