É uma discussão sem fim. Contabilidade é técnica? É ciência? É um sistema? É engenho? Muitos ainda a defendem como arte, ou pelo menos considerando a participação da arte na sua essência. Sempre tive dificuldades para compreender essa última acepção. Mas agora comecei a entender melhor, talvez juntando as ideias de engenho e arte.
Com o CPC 06 (R2), ou IFRS 16, sobre aluguéis, arrendamentos, parcerias, franquias e assemelhados, tudo ficou mais claro. Por essa norma, que entrou em vigência em 2019, resumidamente definiu-se o seguinte: não só o denominado arrendamento mercantil financeiro — em que visivelmente comprava-se um ativo mas se revestia o contrato de uma característica de aluguel (por isso obrigava-se ao registro do bem no ativo e a contrapartida como dívida no passivo) —, mas também os aluguéis “comuns”, contratos de simples parcerias e assemelhados passaram a gerar ativos e passivos.
Antes, o aluguel de um prédio por cinco anos, por exemplo, não promovia o registro de qualquer ativo ou de qualquer passivo. Havia apenas o registro da despesa de aluguel, por regime de competência, ao longo da vida do contrato. Agora não: surge um ativo, surge um passivo, desaparece a despesa com aluguel e emergem duas outras despesas cujos valores no acumulado dão a mesma coisa que a soma dos aluguéis, mas que em cada ano são diferentes. Como o ativo é o valor presente dos pagamentos contratados, o ajuste desses valores presentes em cada balanço gera despesa financeira; e como vai se extinguindo o valor do ativo, tem-se a despesa com amortização ou depreciação. Ou seja, dependendo da relevância dessas operações, a “cara” da demonstração do resultado vai mudar drasticamente, e eventualmente a do balanço também.
Há uma grande mudança conceitual e também terminológica. Antes, quando se ativava o veículo arrendado, aparecia o veículo em si no ativo da arrendatária, o que gerava — e gera — problemas mil no mundo todo, não só no Brasil, principalmente em situações de recuperação judicial, falências ou mesmo de simples cobranças de dívidas. Agora o engenho e a arte funcionaram bem: não há mais o registro do bem no ativo, mas sim o do direito de uso desse bem. Nada mudou, absolutamente, na realidade econômica e jurídica dessas contratações, mas a representação contábil, com arte e engenho — talvez com sustentação “científica”, mas principalmente com criatividade e técnica — mudou, e muito.
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Mas há outras consequências muito mais drásticas. O IFRS vive num ambiente (europeu principalmente), no qual as taxas de inflação são superiores às taxas de juros. Ou seja, as taxas de juros reais são negativas. Aplica-se dinheiro no banco e recebe-se menos do que se aplicou (em alguns casos até a taxa nominal de juros é negativa; assim é demais!). Com isso ficou complicado para eles a máxima: fluxos de caixa nominais, com expectativas inflacionárias, devem ser descontados por taxa nominal de desconto (também com expectativa inflacionária) e fluxos de caixa em moeda constante (denominados de “reais”) devem ser descontados pelas taxas reais de desconto. Óbvio ululante para quem conhece o óbvio de matemática financeira, mas também sensato para totalmente leigos.
Só que utilizar nesses países uma taxa negativa de desconto também é complicado. Difícil de ser entendido mesmo por eles (o valor presente fica maior do que a soma de todos os pagamentos futuros). Assim, inventaram a possibilidade de se trazer fluxos reais a valor presente pelas taxas nominais. Total loucura tecnicamente falando, mas bastante engenho e arte para simplificar a resolução do problema.
Quer o leitor um exemplo? Uma grande rede de varejo brasileira (limitada que divulga suas demonstrações) apresentava, até 2018, aproximadamente, R$ 1,5 bilhão de ativo e R$ 1,3 bilhão de passivo (obviamente sem quaisquer valores relativos a direitos de uso) e, no resultado, despesas com aluguéis de R$ 130 milhões. Agora, tendo que registrar no ativo o direito de uso desses imóveis, em contrapartida ao passivo, e trocar as despesas de aluguéis por depreciações, seu ativo deverá crescer em R$ 0,9 bilhão, e aproximadamente também o passivo. Espera-se que o valor dos pagamentos de aluguéis passe a aparecer na demonstração do fluxo de caixa, ou em alguma nota explicativa, porque os R$ 130 milhões desse desembolso anual estarão distribuídos entre as despesas financeiras e de depreciação desses direitos de uso.
E onde está a arte? Está numa obra (balanço e resultado) que era apresentada de uma certa forma, com certas tintas; agora mudou o cenário apresentado, mudaram as tonalidades, só que a realidade é a mesma. Os números mudaram drasticamente, para representar a mesma coisa! Temos mesmo que ser artistas para conseguir dizer que duas obras tão diferentes representam a mesma realidade. Claro, se esta última estiver mais próxima do que achamos que é a efetiva realidade (como se existisse), ótimo. Mas se não estiver, estará continuando a haver arte, mas a do arteiro, e não a do artista!
Mas aí há outro problema enorme: esses valores estão estimados à base da taxa de desconto nominal, conforme diz a norma. Mas, se utilizada a taxa tecnicamente correta (“real”), os valores de ativo e passivo no caso seriam mudados por R$ 1,2 bilhão.
Não é mesmo uma arte? Ah, coitados dos analistas e demais usuários… Ou, como diriam alguns deles: que bom, assim cada vez menos os outros entendem!
*Eliseu Martins ([email protected]) é professor emérito da FEA-USP e da FEA/RP-USP, consultor e parecerista na área contábil. Para mais detalhes técnicos, consulte o blog: pensamentocontabil.com.br
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