Introdução – a piscina
Quando em vez, me chamam para dar alguma aula ou palestra. E vez em quando aparece essa pergunta: “estamos construindo uma bolha imobiliária/financeira igual aos EUA?”. E dou uma recapitulada no tema e explico que alguns dos instrumentos financeiros e práticas que existiam na época lá nos EUA não existem no Brasil.
Foram diversos instrumentos que compuseram a orquestra da crise financeira de 2008:
- ABS: Asset Backed Securities
- RMBS: Real Estate Mortgage Backed Securities
- CDO: Collateralized Debt Obligations
- CDO²: Collateralized Debt Obligations of CDOs
- CDS: Credit Default Swap
- SCDO: Synthetic CDO (CDO com ativo referência os CDS)
- Além das GSE (Government-sponsored enterprises) agências / associações depara incentivar o mercado de financiamento imobiliário. As mais famosas foram a Fannie Mae e a Freddie Mac
Além dos instrumentos havia também as práticas, que derivavam em parte da existência dos instrumentos que existiam, entre outros:
- Originate-to-distribute (O–to–D) : prática que consiste em originar empréstimos unicamente para vendê-los, ao invés de “carregar” o empréstimo, que acaba por reduzir as análises de crédito por parte do originador;
- Empréstimos NINJA (no income, no job, no assets): da prática O-to-D e a consequente redução de análises de crédito, acabou-se pela concessão de crédito para pessoas sem renda (ao menos estável), sem trabalho (ao menos registrado) e sem garantias adicionais para darem;
- Empréstimos auto-ajustáveis: para poder enquadrar aquelas pessoas que tinha renda baixa (também chamadas de SubPrime) eram empréstimos que tinham um determinado fluxo e que caso determinadas condições fossem atendidas seriam acelerados (Adjustable Rate Mortgages) – tornando os empréstimos em determinados momentos, impagáveis;
- O fato de o CDS não exigir que o “protection seller” não tivesse o ativo referência, fazendo com que o mesmo “volume” de um ativo pudesse ser “garantido” n vezes o seu volume;
- O fato do “protection seller” do CDS não precisar ser uma entidade regulada e portanto não ter capital de referência e índice de basileia – além de outras obrigações;
Assim, quando perguntado do tema eu falava que os principais instrumentos e práticas que aceleraram e aprofundaram a crise americana não existem no Brasil. Ou não existiam.
Pé na água para ver a temperatura da piscina
Em Abril de 2024 o governo brasileiro reformulou o objetivo da Empresa Gestora de Ativos (EMGEA) basicamente transformando ela na Fannie Mae brasileira, conforme artigo “Fannie Mae à la Brasileira” de Maio/2024 aqui na Capital Aberto. Primeiro passo dado em direção à piscina com a água gelada.
Agora em agosto/2024 foi a vez do Conselho Monetário Nacional, que publicou a Resolução CMN 5.166. A resolução inclui a emissão de COEs com referência em créditos, e dispõe sobre as condições de emissão de Certificado de Operações Estruturadas – os COE – e no seu Artigo 2° coloca como possibilidade de ser feito um COE referenciado em diversas obrigações financeiras, incluindo “instrumento de securitização”.
Esta possibilidade acaba por criar o CDO, o CDO² e o CDS no Brasil. Mas o que isso significa? Significa um pulo “bomba” direto no meio da piscina, com direito que molhar o pessoal que está ali perto da beira – e eles não vão ficar tão felizes assim.
Vem pra piscina, tá quentinha – ativos e práticas que levaram à crise financeira/imobiliária americana
O rio corre para o mar. Assim, as práticas que o integrantes do mercado financeiro aderem são aquelas que “conversam” com os instrumentos disponíveis para estruturarem/venderem – de tal forma que embora haja sim um importante fator na índole/caráter destes integrantes – há também um fator importante que são os incentivos financeiros para estruturar como e quais instrumentos .
Sem regulação forte presente (ou ainda: com uma desregulação forte nos anos anteriores) o mercado de securitização (e seus investidores / estruturadores) dos EUA nos anos anteriores à crise de 2008, foi adotando certas práticas conforme os instrumentos foram sendo montados e “tendo compradores”.
Ainda que o primeiro CDO nos EUA tenha sido estruturado em 1987, até pouco tempo antes do ano 2000 eles eram pouco utilizados[1] – e saíram de emissões de US$ 69 Bi em 2000 para US$ 600 Bi em 2006.
Após alguns investidores observarem uma deterioração de crédito nos RMBS lastro para os CDOs e então foram criados então os Credit Default Swaps para “apostar” na quebra/inadimplência daqueles CDOs ou CDO²s. Outros investidores utilizando destes CDS também pediram/compraram os CDO Sintéticos – estrutura para se apostar “contra” os RMBS, porém mais complexa – e que envolvia investidores sênior que pagariam o valor a favor destes primeiros, caso tenha havido default.
A Resolução CMN 5.166 autoriza o COE referenciado em crédito
A Resolução CMN 5.166 revogou as Resoluções CMN 4.263/2013 e 4.536/2016, e sua principal inovação foi a possibilidade do COE referenciado à ativos/instrumentos de crédito.
Neste artigo estamos focando exclusivamente no COE referenciado a CRI e CRA e seus desdobramentos relativos à história já vivida no mercado americano. No artigo 2° da resolução nos seus incisos I, II e III abrange os tipos de referência de obrigação, operação de crédito e entidade de referência, conforme abaixo – abrangendo CRI, CRA e CR (instrumento de securitização), e basicamente todos os tipos de dívida no Brasil.
A possibilidade de COE de COE’s
Da maneira que o inciso I está escrito, ao final dele, “ou qualquer outro instrumento, título ou valor mobiliário sujeito a risco de crédito” deixa aberta a possibilidade para fazer o COE de COE’s – visto que o COE é um título que está sujeito a risco de crédito.
O “COE de CRIs” é o equivalente ao CDO nos EUA e o “COE de COE de CRIs” o equivalente ao CDO². Estes instrumentos dentro da crise financeira de 2008 foram responsáveis pelo agravamento da crise, dado pela possibilidade posteriormente servirem de lastro/referência para os CDS ou CDO sintético.
A importância e a utilidade destes instrumentos no mercado de capitais brasileiro
COE de CRIs / COE de CRAs – semelhanças e diferenças com os CDOs
O COE de CRIs podem ter inúmeras utilidades – mas serve principalmente para “empacotar” CRIs ou séries específicas de CRIs que tenham alguma característica em comum ou que precisem de algum cuidado especial – por exemplo o devedor do lastro daqueles CRI tenha entrado em Recuperação Judicial e precisem de um ativo único que facilite a decisão / assembleias e consequente embate jurídico “unificado”.
O COE de CRIs conforme está na Resolução CMN 5.166 se difere principalmente dos CDOs americanos pelo fato de não existir ainda a possibilidade do COE poder ser fatiado em diversas séries com riscos e retornos diferentes, algo muito importante e básico para o conceito de emissão dos CDOs. Dividir riscos / fluxos de recebimento em tranches com avaliações de riscos diferentes para justamente vender para investidores com apetite a risco e desejo de retorno específicos.
Ainda que não tenham esta possibilidade, o COE de CRIs já atendem à necessidade do mercado de unificar CRIs ou séries de CRIs com alguma semelhança e empacotá-los em uma estrutura única.
Conforme material já disponibilizado no próprio site de registro de COEs na B3, para o COE de Crédito (TRS) a remuneração do investidor está condicionada ao fluxo de pagamentos da entidade obrigação de referência – no nosso exemplo um CRI ou um CRA. Se for um COE com referência em uma carteira de CRIs por exemplo, o efeito final seria um semelhante aos FIIs de CRI – porém sem negociação em bolsa, sem isenção de imposto de renda dos recebimentos de dividendos, mas com efeito de pulverização de risco de crédito semelhante.
COE de COE de CRIs / CRAs
Dado o desenvolvimento atual do mercado de capitais brasileiro, ainda não existiria a necessidade deste produto – até porque ainda nem foi emitido o primeiro COE de CRIs / CRAs.
Mas a utilidade deste tipo de ativo é justamente para empacotar diversas emissões de COEs de CRI/CRAs em uma única emissão por motivos diversos, mas possivelmente para pulverizar risco e obter diversificação extrema, gerando uma mitigação teórica de riscos.
Esta modalidade de COE ainda não possui Lâmina para indicações de registro na B3.
COE de Proteção à Inadimplência de Crédito de CRIs / CRAs – o CDS chegou!
A função deste ativo é para que um investidor possa “apostar” na quebra/inadimplência de um ativo de crédito. Como exemplo um investidor poderia acreditar que determinado ativo, setor, cidade, empreendimento, empresa – devedor ou devedores – terá/terão uma performance de crédito ruim.
Pode por exemplo funcionar como uma diminuição de risco para um investidor que já investe em CRIs e quer reduzir sua exposição ao risco neste setor / ou substor específico.
Conforme material já disponibilizado no próprio site de registro da B3 para o COE de Crédito (CDS), o investidor recebe uma remuneração por assumir risco de crédito de uma entidade/obrigação de referência – no nosso exemplo um CRI ou um CRA.
Para todos os efeitos algum investidor pode a partir de agora apostar contra determinado CRI ou CRA.
Benefícios destes tipos de ativos para o mercado de capitais brasileiro
Estes três novos produtos podem ser muito úteis e benéficos se bem utilizados. Podem por exemplo reduzir volatilidade do setor que forem colocados – se continuarmos focados nos CRIs e CRAs, por exemplo um FII de CRI que tenha 5.000 quantidades de determinado CRI e que suspeite que aquele CRI não irá mais pagar, pode solicitar a um emissor de COE que estruture uma operação de proteção de risco de crédito para aquele CRI, emitindo um COE de Crédito (CDS) com referência em 5.000 quantidades daquele mesmo CRI – ou menos caso não queira se proteger integralmente daquele possível default. Haverá um custo de estruturação, mas com segurança este custo será menor do que se o CRI realmente entrar em inadimplência.
Outra possibilidade é um outro FII de CRI que tenha uma exposição muito grande no setor logístico em determinada cidade por exemplo, pode solicitar que seja estruturado um COE de Crédito (CDS) de um CRI do setor logístico naquela mesma cidade, tentando se proteger deste risco através de um risco semelhante – não exatamente igual.
E pode haver ainda investidores (FII de CRI ou outros) que acreditando que determinado projeto residencial irá “quebrar” podem solicitar ao emissor de COE que estruture um COE de crédito (CDS) para realmente apostar que aquele CRI quebre. Fazendo com que seu investimento tenha sucesso no caso de fracasso daquele projeto.
No caso do COE de Crédito (TRS) – o equivalente ao CDO – provavelmente terá uma utilização mais específica na unificação de CRIs / CRAs de um mesmo emissor que tenha entrado em RJ ou Falência para facilitar a excussão dos créditos e emitir um CRIzão ou CRAzão – termo que tentou ser emplacado em um caso específico de vários CRIs de uma loteadora que pediu RJ e tinha nos seus CRIs diversos investidores pulverizados.
Pela falta de possibilidade de tranchear o COE de Crédito em diversas séries cada uma com seu risco e retorno deve causar uma limitação à quantidade /volume de emissão do produto – e de sua aderência por parte do mercado.
Público-alvo e Regime Informacional, acompanhamento dos ativos de crédito referência dos COE, conflito de interesses e o “originate-to-distribute”
Público-alvo e Regime Informacional – ainda uma dúvida
A CMN 5.166 no seu artigo 12 deixa muito amplo a possibilidade para venda ao público geral restringindo praticamente poucas operações de crédito – e nenhuma de CRI e CRA. É algo que ou o CMN ou a CVM deverão normatizar o quanto antes o possível – já sabemos o que aconteceu no mercado americano nos anos anteriores a 2008 e quem pagou a conta daqueles investimentos minimamente escusos.
O regime informacional então nem se fala. Na resolução menciona a necessidade de disponibilização de informação no momento da emissão para o investidor ter capacidade de avaliar o risco de crédito que estará aplicando seus recursos. Por vezes vejo gestores com dificuldade de acompanhar os CRIs/CRAs de suas carteiras por dificuldade no acesso às informações – ou interpretação do que chega até eles – imagine o investidor do varejo ou os assessores de investimento, visto que ambos não possuem o conhecimento específico que os gestores têm. Deveria haver obrigatoriedade de regime informacional do ativo subjacente (referência) do COE de Crédito minimamente semestral – ou até mensal a depender da qualidade do crédito – e complexidade do ativo.
Acompanhamento de crédito: básico para o sucesso
O acompanhamento dos ativos referência de COEs de Crédito não são pauta da Resolução em questão. No artigo 8° é mencionado no inciso I a respeito do valor de mercado do COE e no inciso II° normatiza do valor do COE baseado em análise de sensibilidade realizada conforme metodologia específica do Bacen. Ambos os incisos não tratam do acompanhamento do CRI por exemplo se for um CRI de conclusão de obra, acompanhando as vendas, fundos de obras e desenvolvimento do empreendimento em questão.
Determinadas estruturas de CRIs ou CRAs são basicamente impossíveis de acompanhar baseado em metodologia qualquer, são tão complexos que necessitam de metodologia própria para acompanhar – além de ter necessariamente ter que estar acompanhando o ativo desde sua estruturação para poder compreender / avaliar ao longo do tempo os gatilhos e covenants adequadamente.
Há ainda o ponto de que a partir do momento que o COE é emitido com referência em determinado crédito, a instituição emissora deixa de ter a retenção de riscos e benefícios daquele crédito – visto que ainda que o artigo 15 nos seus incisos I, II e III e parágrafo único deixam claro que a instituição emissora tenha que deter o risco de crédito no momento da emissão e carregar o risco até o vencimento do COE – no momento da emissão do COE a instituição capta recursos e passa o risco de balanço para o adquirente do COE de crédito – qual o interesse em acompanhar aquele ativo de crédito após a emissão do COE? Qual o interesse que o crédito se mantenha bom? Como mitigar esse risco?
Originate to distribute: perigoso para quem compra, maravilhoso para quem origina
E mais: há ainda o risco do “originate-to-distribute”. Que foi – ao meu ver – um dos maiores problemas que catalisaram a crise financeira de 2008. A partir do momento que o incentivo à instituição (e seus colaboradores) é de originar (ganhar um fee) e vender (e ganhar outro fee) as “barreiras” de entrada de novos créditos se reduzem a quase zero, visto que suas receitas estão alinhadas com o giro e originação “infinita”.
Não possibilidade de alavancagem – o grande acerto da RCMN 5.166
Conforme rege a resolução, para poder emitir o COE de proteção de crédito (CDS) o emissor deverá possuir o ativo. Assim, isso evita um dos grandes catalisadores da crise financeira/imobiliária de 2008 – o “Naked CDS”. Onde a parte garantidora do ativo não o detinha, permitindo que as emissões de CDS alavancassem por algumas vezes o valor da emissão original. No filme “A grande aposta” eles exemplificam isso como se fosse o feito o seguro contra incêndio de uma casa por diversas vezes, e até por alguém que não fosse o dono da casa. É um absurdo, mas foi o que foi feito nos anos anteriores à crise de 2008 nos EUA.
O CMN acerta e muito ao impedir a “alavancagem” deste tipo de produto. A ver como o mercado reage à estas restrições.
Não possibilidade de várias tranches para o passivo do COE de crédito
Nesta primeira redação incluindo o COE de Crédito, não está prevista a emissão em várias tranches para o COE de Crédito, mas talvez essa seja a qualidade mais interessante deste tipo de ativo. Poder efetivamente dividir os riscos e benefícios para os investidores que tenham aquele apetite. Talvez esta restrição dificulte o “crescimento” mais acelerado deste tipo de produto.
Conclusões
Inovações no mercado financeiro – especialmente no mercado de securitização me encantam e sou um entusiasta, mas a criação dos CDOs e CDS sem uma consulta ampla e isonômica ao mercado me pareceu precipitada, especialmente porque à primeira vista parece que existem ponto que passaram despercebidos na redação da Resolução CMN 5.166, como:
- a possibilidade de COE de COE’s,
- a falta de um regime informacional posterior à emissão adequado para acompanhamento do risco do ativo referência dos COEs de Crédito por parte do investidor – e não só do valor a mercado ou de análise de sensibilidade,
- a amplitude de público que os COEs de crédito acabaram na prática por atender dadas as poucas restrições de público que ficou redigido, basicamente publico geral pode comprar COE de CRI/CRA (CDS e/ou CDO),
- acompanhamento da instituição emissora do crédito referência do COE de crédito após a emissão do COE,
- a falta de alinhamento de interesses em emissores que praticam o originate-to-distribute e consequente falta de regulação deste tema na norma,
- falta de regime informacional que seja condizente com os ativos referência dos COE de crédito,
- falta de normatização pela CVM – dada a possibilidade de oferta do COE de crédito ao público de varejo, dado que os COE passam a ser valores mobiliários no momento de uma oferta pública,
- a falta da possibilidade de multi-tranches no COE de crédito (CDOs) para poder fatiar os riscos e benefícios para diferentes tipos de investidores e seus respectivos interesses / necessidades.
Em uma primeira e mais rasa análise estes são os pontos a serem observados na criação dos CDS e CDO brasileiros. A inovação é bem vinda, mas temos que olhar e acompanhar com muita atenção tanto os ativos quanto a EMGEA.
O que antes era impossível de acontecer no Brasil (uma bolha imobiliária/financeira) passou a ser possível em menos de 6 meses. Tem muita água para passar debaixo desta ponte ainda, mas devemos nos manter super atentos e vigilantes para poder preservar o mercado de capitais brasileiro forte – ainda que em desenvolvimento – forte. A vantagem de estar 20 anos atrás do mercado de securitização americano é que podemos aprender com os erros deles e evitar que algo semelhante aconteça aqui.
Leia também: Taxação dos FIIs e FIAgros e o fantasma da ópera
Felipe Ribeiro é sócio diretor de Investimentos Alternativos do Clube FII, atua apoiando a regulação e autorregularão de securitização do mercado desde 2012, e é autor do primeiro livro dedicado a FIIs de CRI no Brasil
[1] All the Devils Are Here: The Hidden History of the Financial Crisis, Bethany McLean and Joe Nocera – 2010
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