O mundo vivencia, com perplexidade, a pandemia de covid-19 e seu rastro de destruição. Experiências de países que estão “à frente na curva” são frequentemente analisadas, e precisam ser interpretadas à luz de suas realidades locais — considerando lideranças, traços culturais, situação socioeconômica da população e infraestrutura pública de saúde, apenas para citar alguns aspectos. No Brasil, particularmente, o desafio do enfrentamento da pandemia é imenso. A combinação de desorientação do governo, insensibilidade e cegueira política com a vulnerabilidade de parcela expressiva da população é explosiva. O momento é gravíssimo. Não é hora de fazer política e sim de proteger vidas.
A vulnerabilidade da população à disseminação do novo coronavírus ocorre tanto na prevenção quanto no tratamento. O distanciamento social não é viável para quem precisa a cada dia correr atrás de renda e vive em habitações precárias, com aglomeração de pessoas em pequenos espaços, problemas de saneamento, fornecimento de água e ventilação. A infraestrutura de saúde pública brasileira já entrou em colapso em algumas cidades, sendo importante ressaltar que mesmo antes da pandemia já não era capaz de atender adequadamente a população.
A pandemia proporcionou uma rápida compreensão, um verdadeiro “wake-up call”, de que vivemos em um mundo de interdependência. É preciso pensar no coletivo e não no individual. Essa compreensão pode nascer de uma visão altruísta ou econômica. A econômica foi escancarada nesta crise. A aceitação da interdependência implica a necessidade de uma profunda transformação cultural nos modelos de negócios, na educação, na vida profissional e pessoal.
Muitas e expressivas têm sido as vozes conclamando as empresas a atuarem em prol dos stakeholders (partes interessadas) e não mais exclusivamente em prol dos shareholders (acionistas): Davos Manifesto 2020 e Business Roundtable, organização que reúne CEOs das maiores empresas dos EUA, são exemplos bastante relevantes. A Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, criada em 2015, reafirma os resultados de todas as grandes conferências e cúpulas da Organização das Nações Unidas (ONU) que estabeleceram uma base sólida para o desenvolvimento sustentável, atuando em três dimensões: a econômica, a social e a ambiental.
O engajamento das empresas na Agenda 2030 é muito importante. É fundamental que reflitam sobre o seu papel na sociedade, se conscientizem a respeito do impacto social causado pelas suas atividades, respondam a desafios mais amplos e que tenham um propósito social. A sociedade civil e os investidores institucionais, como provedores de recursos para as empresas, ocupam posição privilegiada para demandar que as empresas assumam sua responsabilidade nesse processo de mudança na forma de atuar. As organizações empresariais precisarão ser mais humanas.
Os indicadores de sucesso corporativo certamente vão mudar: a busca desenfreada por resultados financeiros perderá espaço e aspectos ASG (ambiental, social e de governança) ganharão relevância, passando a compor as metas de desempenho para cálculo da remuneração variável dos administradores e funcionários das empresas. A gestão de riscos precisará ser revista, privilegiando maior margem de segurança e resiliência das empresas. Impactos poderão ser observados da cadeia de suprimentos até a estrutura de capital.
Diante da incapacidade do Estado brasileiro de liderar e prover o básico, está no protagonismo da sociedade civil e das empresas a força para superação dos imensos desafios atuais, lançados a um crescimento exponencial pela crise. Líderes empresariais e da sociedade civil nacional têm demonstrado, neste momento agudo da crise, espírito de solidariedade e capacidade de engajamento, articulação e ação no combate à covid-19 e na mitigação de impactos para famílias vulneráveis. Esse é um importante início de uma transformação que precisa ser estrutural e não apenas conjuntural, limitada à pandemia.
Temos diante de nós a oportunidade de construir um mundo mais digno e com menos desigualdade. Empresas precisam responder a esses desafios, ter propósito e assumir responsabilidade social. Essencial que a prática das empresas tenha aderência aos valores e ao propósito comunicados em seus relatórios corporativos. Afinal, elas serão admiradas — ou julgadas — pelo o que fizeram ou não durante esta crise, pela maneira como trataram seus stakeholders. Este momento é de fato um grande teste para o stakeholder capitalism. É a hora da verdade.
*Ana Siqueira, CFA ([email protected]) é sócia fundadora da Artha Educação
Leia também
O dia seguinte dos negócios pós-pandemia
Pandemia abre espaço para primeiras assembleias digitais
Qual será o compromisso pós-coronavírus?
Outubro Liberado
Experimente o conteúdo da Capital Aberto grátis durante todo o mês de outubro.
Liberar conteúdoJa é assinante? Clique aqui
Outubro Liberado
Experimente o conteúdo da Capital Aberto grátis durante todo o mês de outubro.
Ja é assinante? Clique aqui