O colegiado da CVM decidiu por unanimidade1 condenar uma pessoa jurídica de direito público, acionista controladora de empresa estatal, por abuso de poder de controle, determinando o pagamento de multa no valor de 500 mil reais. Na opinião do colegiado, ao se beneficiar injustificadamente de serviços prestados pela companhia a título gratuito, a controladora descumpriu o art. 116, parágrafo único da Lei 6.404/76. Os administradores da sociedade não foram responsabilizados.
O assunto foi objeto de reclamação feita por acionistas minoritários em 2012 e teve origem em quando a controladora decidiu remunerar a empresa pelo exercício de serviços específicos antes feitos por outra estatal, como forma de estimular a sustentabilidade econômica da empresa. Porém, a remuneração pelo serviço foi reduzida substancialmente em 1999 e, em 2003, extinta.
Os serviços continuaram sendo prestados e a empresa passou a sustentar a tese de que o serviço em questão é inerente e conexo à sua atividade fim, que difere do serviço prestado em questão e já remunerada em apartado. Não haveria, por essa lógica, necessidade de contraprestação por parte da pessoa jurídica de direito público.
A acusação entendeu ser irregular essa prestação de serviço, uma vez que a atividade fim da companhia não é inerentemente conexa ao serviço prestado gratuitamente, tese corroborada pela agência reguladora relacionada ao serviço. O contrato de concessão celebrado entre a companhia e a controladora em 1998 também tratava do serviço hoje prestado gratuitamente como atividade independente do serviço fim. Tendo em vista a prática continuada, a acusação entendeu que a prescrição quinquenal prevista na Lei 9.873/99 atinge parte dos fatos, pelo que foram considerados somente aqueles ocorridos cinco anos antes da instauração do processo de origem.
Vale notar que o colegiado rejeitou proposta de termo de compromisso apresentada pela controladora (em que esta se comprometeu a repassar uma quantia à companhia), por entender que a acusada não foi além de refutar a acusação e pelos fatos de o ato apontado na acusação não ter cessado por meio do cumprimento das obrigações atuais, não ter sido realizado o efetivo pagamento pelos serviços prestados, bem como não ter sido feita à autarquia proposta de indenização.
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A condenação da controladora por infração ao art. 116, parágrafo único da Lei 6.404/76 foi fundamentada na quebra do dever de lealdade que os acionistas controladores têm perante a companhia e seus demais stakeholders2 [i.e., o acionista que detém a maior parte das ações de uma companhia não poderá sacrificar os interesses dos minoritários (e de outros stakeholders) em causa própria].
O ponto-chave desse caso foi justamente o fato de a operação ter a própria pessoa jurídica de direito público como acionista controladora e tomadora dos serviços da companhia, tornando os interesses tutelados conflitantes e prejudicando a receita-lucratividade da companhia.
A discussão torna-se mais interessante e complexa ao se ponderar a natureza pública da controladora, que poderia “orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação”, conforme diz o art. 238 da Lei 6.404/76.
Em uma leitura mais aberta desse dispositivo, teoricamente a finalidade lucrativa poderia ser relativizada na gestão da controladora dessas sociedades, em atendimento a interesses públicos. Todavia, o colegiado reiterou que ela não pode utilizar o art. 238 como prerrogativa para afastar todos e quaisquer deveres de acionista controlador3: o dispositivo não obsta a aplicação das regras que limitam o exercício do poder de controle quando a atividade da companhia não estiver vinculada ao interesse público que justificou sua criação. E, na situação analisada, o serviço prestado não constitui o interesse público que justificou a criação da companhia.
Por fim, com relação à responsabilidade dos administradores, o colegiado decidiu por manter o posicionamento da área técnica e não lhes atribuir sanções. A justificativa foi pautada no caráter continuado da prática abusiva. Desde 2006, a companhia sustentava a tese de conexão dos serviços em pauta, causando um cenário difícil para um administrador que fosse assumir posteriormente o cargo — mesmo que desejasse individualmente modificar o posicionamento da companhia, as chances de êxito e ressarcimento por parte da controladora seriam pequenas. O colegiado alertou, no entanto, que caso não se iniciem imediatamente esforços para modificar a situação irregular apresentada uma posterior responsabilização dos administradores poderá ser aplicada.
* Por João Marcelo Pacheco ([email protected]), Thiago José da Silva ([email protected]) e Carolina Queiroga Nogueira ([email protected]) respectivamente, sócio, associado sênior e assistente do escritório.
Notas
1PAS CVM SEI nº 19957.000714/2016-12 (RJ2016/082)
2Conceito que inclui, nos termos do art. 116, parágrafo único da Lei 6.404/76, os demais acionistas da companhia, os que nela trabalham e a comunidade em que atua.
3Como já observado pela relatora Luciana Dias no PAS nº RJ2012/1131, que também condenou o Estado de São Paulo como controlador da Emae por infração ao art. 116, parágrafo único, da Lei 6.404/76.
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