O tema da alienação fiduciária é amplo e, conforme debatemos em artigos anteriores, seu aniversário de 20 anos enseja novas reflexões.
Temos assistido à efetivação da execução da garantia pelos cartórios extrajudiciais e a intervenções pouco palatáveis do Judiciário. Diante de uma disponibilidade patrimonial restrita, uma questão recorre: como proceder se o devedor fiduciante pretende obter crédito oferecendo em garantia imóvel já gravado com alienação fiduciária? Eis o ponto deste artigo.
Propomos a validade de constituição da alienação fiduciária da propriedade superveniente. Por meio dela, uma vez cumprida a obrigação garantida pela alienação fiduciária anterior (e cancelado seu registro), torna-se eficaz de pleno direito a alienação fiduciária da propriedade superveniente e transferem-se ao credor fiduciário a propriedade resolúvel e a posse indireta do bem. Há fundamentos legais e pragmáticos para tanto, e o percalço parece estar na prática registrária.
A possibilidade da alienação fiduciária de propriedade superveniente decorre da aplicação de dispositivos do Código Civil, da interpretação sistemática da lei e da análise conjunta de normas e princípios entre si aplicáveis.
O devedor fiduciante que transfere ao credor fiduciário a propriedade resolúvel do imóvel, retendo para si a posse direta, detém o direito de — uma vez pagas a dívida e seus encargos — reaver a propriedade plena. Esse direito (à propriedade superveniente) existe conforme prevê a lei que o instituiu, ao determinar que o devedor fiduciante, com a anuência expressa do fiduciário, pode transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel, assumindo o adquirente as respectivas obrigações. Mas não necessariamente esse direito eventual precisa ser objeto de venda. Entendemos que o direito à propriedade superveniente pode ser dado em garantia.
Ora, se o devedor fiduciário pode vender o seu direito à propriedade eventual, pode também gravá-lo — mas terá que fazê-lo sob condição suspensiva: quitada a dívida, ocorre a consolidação da propriedade plena em nome do devedor fiduciante e imediata e automaticamente se transfere a propriedade resolúvel ao novo credor fiduciário. Não falamos da constituição de propriedade fiduciária sucessiva, mas sim da alienação fiduciária da propriedade superveniente, da qual o fiduciante se torna titular quando do cancelamento da propriedade fiduciária que estava no patrimônio do credor anterior.
A questão esbarra no âmbito registrário. Em decisão recente proferida em processo de dúvida suscitada pelo Cartório de Registro de Imóveis de São Bernardo do Campo (SP), a primeira instância do Judiciário manteve o óbice registrário, por entender que essa modalidade de constituição da alienação fiduciária em garantia não pode ser registrada por não ser título listado no rol taxativo previsto na Lei de Registros Públicos.
De fato, um dos princípios mais expressivos do Direito Registrário e Notarial brasileiro é o da legalidade, que impede o ingresso, no Cartório de Registro de Imóveis, de títulos inválidos ou imperfeitos. Ocorre que esse princípio tem duas vertentes, complementares: a análise da taxatividade dos direitos inscritíveis no Registro de Imóveis (só podem ser registrados ou averbados os títulos que a lei assim determinar) e o controle da legalidade exercido pelo registrador na análise desses títulos. O registro da alienação fiduciária da propriedade superveniente nos parece absolutamente possível: a Lei de Registros Públicos elenca os títulos passíveis de registro, citando a venda e compra e também a alienação fiduciária.
E o que ocorre quando há inadimplemento do devedor fiduciário?
Entendemos que faz sentido que o valor do crédito objeto da garantia seja destinado à quitação da obrigação garantida pela alienação fiduciária anterior. Isso porque, havendo a excussão da garantia pelo primeiro credor fiduciário, restaria ao credor fiduciário da propriedade superveniente o direito de concorrer, em igualdade de condições com outros credores com garantia real, com eventual produto remanescente da venda do imóvel em leilão — o que nem sempre se verifica. Na pior das hipóteses, sem arrematantes, o credor fiduciário acaba por adjudicar o imóvel, e a ele restaria buscar reaver o crédito de outra forma. Ou seja, o direito do credor anterior é plenamente respeitado, e não é sequer afetado pela alienação fiduciária de propriedade superveniente.
Essas reflexões merecem maior aprofundamento — afinal, não decorrem de previsão legal expressa e demandam interpretação sistemática. No entanto, o grau de maturidade jurídica que a discussão já alcançou e a necessidade econômica de uma solução legitimam o recebimento e registro, nos cartórios extrajudiciais, de títulos que constituam alienação fiduciária da propriedade superveniente. Principalmente para não excluir do rol de soluções um mecanismo que dá conta de uma situação recorrente e, ao mesmo tempo, respeita o direito de todos os envolvidos.
Marina Del’Arco ([email protected]) é sócia de NFA Advogados
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