O triste carnaval tributário das reestruturações

A notória complexidade do sistema tributário brasileiro levou o saudoso professor Alfredo Augusto Becker a apelidá-lo de “carnaval tributário”. A expressão, embora ilustre claramente a desorganização que caracteriza nosso sistema, ainda tem uma conotação meio festiva — que guarda, no entanto, pouca proximidade ao verificado no dia a dia das empresas.

É possível dizer que o sistema tributário brasileiro é horizontalmente complexo e verticalmente pouco sofisticado. Essa complexidade horizontal decorre da existência de uma infinidade de tributos distintos, com as mais variadas materialidades, e cobrados por diferentes entes (que muitas vezes competem entre si, o que gera a chamada “guerra fiscal”). Por seu turno, a escassez de sofisticação vertical tem como causa a existência de numerosas lacunas na legislação, o que intensifica a belicosidade que separa fisco e contribuintes — a despeito da absurda quantidade de normas de natureza fiscal que são diariamente editadas.

Há pelo menos uma década pesquisas feitas por diferentes instituições indicam uma carga tributária superior a 30%, o que coloca o montante médio de tributos recolhido pelos brasileiros muito próximo aos percentuais pagos nos países mais desenvolvidos do mundo. A particularidade do sistema nacional reside no fato de a maior parte do provento arrecadado não estar associada aos tributos incidentes sobre o lucro/renda — que melhor demonstram a capacidade econômica do contribuinte — mas sim a tributos que incidem sobre consumo, propriedade e afins. Significa dizer que o dever de pagar de tributos não cessa (e pouco diminui) àqueles que enfrentam dificuldades financeiras.

Em termos práticos: o fisco é um sócio privilegiado em tempos de bonança, e um dos mais vorazes credores em tempos de dificuldade. Essa situação é potencializada pela legislação de insolvência brasileira, que exclui os débitos tributários do âmbito da recuperação judicial e não permite a negociação/transação em outras circunstâncias (ainda que os contribuintes possuam precatórios, créditos tributários ou prejuízo fiscal).

Nesse contexto, é importante registrar que os efeitos fiscais de operações de reestruturação são ainda mais significativos nos casos de insolvência ou pré-insolvência, podendo gerar repercussões igualmente danosas a devedores, credores e investidores caso essas operações não sejam também estruturadas levando-se em consideração os respectivos efeitos fiscais. Esses impactos se mostram ainda mais devastadores num cenário em que devedores têm limitação de caixa, credores querem estancar as suas perdas e investidores buscam mensurar os potenciais retornos vis-à-vis os riscos.

Aos devedores, os tradicionais hair-cuts (perdões de dívida) são normalmente tributados por IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, o que pode gerar uma carga tributária de até 45% (além de outros efeitos fiscais indiretos). A título exemplificativo, numa operação em que é concedido um hair-cut de 80% e pagamento alongado do remanescente, o valor devido ao fisco à vista é bastante superior àquele que será pago ao credor a prazo. Além disso, o programa de parcelamento concebido para supostamente ajudar as empresas em dificuldade a quitar suas dívidas fiscais se mostra tão desconectado da realidade que raramente é utilizado.

Aos devedores, eventuais repactuações de recebíveis já baixados como perda podem gerar uma renda tributável, ainda que não exista expectativa de realização do novo ativo recebido. Aos investidores, falta segurança quanto à sucessão dos passivos fiscais do vendedor e há limitações ao uso de ágio, prejuízo e créditos fiscais.

Todo esse cenário foi potencializado com a alteração da legislação contábil brasileira e a recente edição da Instrução Normativa 1.700/17 da Receita Federal, que passou a exigir a avaliação a valor justo de instrumentos financeiros, com especial impacto nos casos em que essa avaliação recai sobre passivos e nas respectivas permutas. Essas regras tendem a ter imediato impacto nos planos de recuperação que prevejam troca de instrumentos financeiros passivos por patrimoniais ou até mesmo por instrumentos financeiros passivos de outras naturezas (operações usualmente tidas como sem efeito fiscal), como nos casos de troca de dívidas por debêntures, participações societárias e afins.

Portanto, enquanto a legislação fiscal brasileira não for adaptada às situações de insolvência, as reestruturações não podem se furtar de tratar um fisco como um voraz credor, ainda que ele não se sente às mesas de negociações. Ignorar essa circunstância pode transformar um eventual plano de recuperação em sentença de morte, tornando um interessante negócio num passivo ambulante.


*Thiago Medaglia ([email protected]) e Eric Visini ([email protected]) são, respectivamente, sócio-conselheiro e associado do departamento de tributário de Felsberg Advogados


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