Após quase 18 anos da edição da Instrução 356 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), enfim o Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou a natureza jurídica dos fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs). A oportunidade veio da avalição de recurso especial1 de uma decisão de instância inferior apresentado pelo Multirecebíveis II – FIDC — o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) havia decidido que os FIDCs têm a mesma natureza jurídica das sociedades de factoring ou de fomento comercial.
Baseado nessa premissa, o TJ-SP concluiu que as estipulações contratuais que mitigassem os riscos dos FIDCs — como a coobrigação e as garantias reais ou fidejussórias — não seriam admissíveis, pois fariam com que as operações dos fundos se assemelhassem ao desconto bancário, modalidade típica das instituições financeiras. O FIDC recorrente, por sua vez, pugnava em sua argumentação central pela legalidade da cláusula de coobrigação, fundamentando-se no artigo 296 do Código Civil2 e na notória diferença das naturezas jurídicas de FIDCs e sociedades de factoring — a única semelhança está na aquisição de direitos creditórios.
A pedido do recorrente, foram convidados a se manifestar nos autos, na qualidade de amicus curiae, entidades representativas do mercado de capitais (Anbima e Anfidc), do direito civil (IBDCivil), do direito do consumidor (Idec) e possivelmente o “amigo da corte” mais relevante — a CVM, reguladora dos FIDCs. Todos se manifestaram em convergência com a argumentação do fundo recorrente, o que amplificou a discussão material sobre o objeto do recurso.
Por unanimidade, a 4ª Turma do STJ decidiu pela plena possibilidade da estipulação da coobrigação nas aquisições de direitos creditórios por parte dos FIDCs. Não nos parece haver dúvidas sobre a assertividade do julgado, uma vez que não existe fundamento para afastar a possibilidade de coobrigação do cedente em cessões de crédito que contem com FIDCs como cessionários.
Entretanto, vem causando polêmica a conclusão, contida no julgado, que de certa maneira equipara os FDICs às instituições financeiras — controvérsia, a nosso ver, infundada ou decorrente de uma visão minimalista do Sistema Financeiro Nacional (SFN). Muitos associam o termo “instituição financeira” ao sistema bancário, regulado pelo Banco Central; ocorre que o mercado de capitais, sob regulação da CVM, igualmente integra o SFN. Foi com base nessa avaliação mais ampla3 que o ministro relator entendeu que o paradigma das operações feitas pelos FIDCs seria a operação de desconto (celebrada por bancos) e não as operações comerciais das sociedades de factoring ou de fomento comercial.
Cabe ressaltar que o relator não igualou ou equiparou os FIDCs a bancos; igualou e equiparou o tratamento a ser dado às operações de ambas as estruturas, integrantes que são do SFN. Em seu voto, o relator deixou assentado que os FIDCs buscam no mercado (poupança nacional) os recursos para suas aplicações, de forma que se a coobrigação e a instituição de garantias são permitidas aos bancos nas operações de desconto as mesmas prerrogativas devem ser atribuídas aos FIDCs, sem que isso represente qualquer equiparação entre uma estrutura e a outra.
Destarte, o acórdão proferido pelo STJ, além de reconhecer a possibilidade de previsões contratuais que coobriguem os cedentes nas cessões de crédito operadas com FIDCs, reconheceu a integração destes ao SFN, repelindo a utilização de outros paradigmas como fundamento para análise de sua natureza jurídica.
*José Luis Dias da Silva ([email protected]) é sócio-fundador do Dias da Silva Advogados. Colaborou Arthur Dias da Silva ([email protected]) advogado do mesmo escritório.
Notas
1Recurso especial nº 1.726.161/SP; relator ministro Luiz Felipe Salomão.
2Segundo o artigo, salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor.
3À luz do que disciplina a Lei 4.585/64, que regula o SFN.
Obs.: O autor deste artigo é o advogado que representou o FIDC recorrente ao STJ.
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