A nova legislação confirma, em âmbito nacional, a possibilidade de securitização da Dívida Ativa, assim como de outros créditos públicos. O que abre espaço para estruturação de operações relevantes, considerando os números envolvidos: dados recentes do CNJ indicam a existência de 23 milhões de execuções fiscais em curso nos tribunais brasileiros. Em que pese a ausência de dados consolidados e consistentes sobre o estoque global de Dívida Ativa, estima-se que a cifra supere R$ 7 trilhões.
O tema não é inédito, existindo leis em âmbito municipal e estadual, assim como esforços conduzidos de forma pontual por Estados (São Paulo e Rio de Janeiro) e Municípios (Belo Horizonte e São Paulo). Todavia, a nova lei federal reflete importante avanço, pois a falta de um posicionamento do Congresso Nacional acerca do tema trazia incerteza e afastava investidores interessados, prejudicando a viabilidade das operações e os próprios entes federados.
As 12 operações estruturadas no passado foram afetadas por estas incertezas. Conviveram com o risco de questionamentos pelos tribunais de contas acerca da violação à vedação de realização de operações de crédito nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal, como no caso de Belo Horizonte, e de descaracterização na natureza tributária dos créditos adquiridos.
Buscando alterar este panorama, a Lei Complementar 208/2024 inclui um grupo de normas no Estatuto das Finanças Públicas, principal regulamento com as regras jurídicas atinentes ao orçamento, despesas, receitas, débito público e outras questões orçamentárias e incorpora pontos de leis estaduais e municipais já existentes sobre a matéria.
O novo texto normativo, contudo, tem suas limitações, com destaque para a ausência de uma definição clara de quais créditos públicos seriam elegíveis. O texto não é claro ao dispor se a cessão abarca créditos já constituídos e créditos reconhecidos pelo contribuinte, ou se tais condições são cumulativas, contemplando apenas créditos constituídos já reconhecidos pelo contribuinte.
Uma breve pesquisa sobre os pareceres e sugestões de emendas apresentadas durante o trâmite da medida revela que a exigência de reconhecimento do crédito pelo contribuinte deveria se aplicar apenas aos créditos públicos ainda não inscritos em Dívida Ativa. O reconhecimento daria aos créditos não inscritos um efeito semelhante à liquidez e certeza já concedidas aos créditos inscritos em Dívida Ativa pela lei. Assim, espera-se que o Decreto a ser editado para regulamentar a nova lei estabilize este entendimento, beneficiando a segurança jurídica.
Além disso, a lei recém-publicada indica que este reconhecimento pode ser feito “inclusive mediante formalização de parcelamento”. A hipótese de parcelamento, que dialoga com créditos tributários não é a única forma de reconhecimento admitida, tendo espaço para cessão de direito a créditos reconhecidos por outras vias, tais como créditos relativos às companhias de habitação ou mesmo outorgas de concessões públicas, que são reconhecidos pelo devedor quando da celebração dos respectivos instrumentos contratuais.
Outra imprecisão diz respeito à cobrança do crédito, em caso de inadimplemento. O texto assegura “à Fazenda Pública ou ao órgão da administração pública a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial de créditos de que se tenham originados os direitos cedidos”. Acerca desta previsão, um debate atual é se esta atribuição para cobrança dos créditos seria ou não delegável ao ente privado.
Ao assegurar uma prerrogativa, a lei parece reservar à Fazenda a possibilidade de realizar a cobrança, e não a obrigação de fazê-lo. Isso implica que a competência pode ser delegada, o que não é uma novidade: a cobrança de créditos públicos por particulares, como escritórios de advocacia contratados, já é uma prática estabelecida. Essa delegação inclui tanto a cobrança de créditos em favor de municípios menores quanto da própria União em um passado recente, abrangendo todo o ferramental jurídico disponível, como execuções fiscais e medidas cautelares fiscais.
Mesmo assumindo como premissa que a competência das procuradorias fazendárias seria indelegável, é possível construir soluções por meio de parcerias público-privadas. Além disso, a securitizadora, interessada no aprimoramento da capacidade do ente público em recuperar os créditos, poderia oferecer suporte material e tecnológico, além de compartilhar com os órgãos fazendários boas práticas da atividade de cobrança desenvolvidas no setor privado, respeitando a natureza especial do crédito público.
Além disso, seguindo a experiência prévia de Estados e Municípios, a lei complementar permite expressamente que os entes federados criem sociedades de propósito específico com o objetivo de participar na operação de securitização, seja como adquirente ou emissor de certificados de recebíveis. No entanto, isso levanta um alerta: ante a situação financeira dos municípios no país e os montantes reduzidos de seus créditos públicos em comparação aos valores normalmente envolvidos neste tipo de transação, há um risco de que estes fiquem à margem desta alternativa para aumentar suas receitas.
Como forma de evitar este resultado e viabilizar a cessão em Municípios de menor porte, com volume de créditos reduzidos, uma alternativa é que estes entes formem parcerias intermunicipais, tais como os consórcios atualmente existentes. Para tanto, há experiências relevantes nos setores de saneamento, transporte urbano e outros segmentos de infraestrutura para se basear.
Por fim, um ponto que causa estranheza é a não inclusão de tratamento tributário diferenciado para os eventuais certificados de recebíveis lastreados em créditos públicos. Diferentemente dos Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) e dos Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), os rendimentos destes certificados não foram agraciados com a isenção do Imposto sobre a Renda incidente sobre os rendimentos pagos a pessoas físicas (IRPF), uma vez que a Lei não traz alterações nesse benefício fiscal previsto na Lei nº 11.033, de 21 de dezembro de 2004.
Assim, os rendimentos decorrentes dos Certificados de Recebíveis lastreados em créditos públicos devem seguir as regras de tributação aplicáveis aos títulos de renda fixa. Situação está que gera um contrassenso: os benefícios tributários concedidos aos CRI e CRA são baseados na importância destes instrumentos para o desenvolvimento econômico e melhoria da qualidade de vida, uma lógica que deveria se estender aos certificados de recebíveis da nova lei. A liberação de recursos para Estados e Municípios em situações fiscais críticas deveria ser incentivada, visto que esses recursos serão diretamente aplicados no bem-estar da população, inclusive por exigência expressa da própria lei complementar.
Com a sanção presidencial e a publicação da Lei Complementar nº 208/2024, aguarda-se agora a sua regulamentação, que deverá trazer maior clareza para as operações de cessão de direitos creditórios. E espera-se que tal iniciativa do Congresso Nacional alivie as finanças públicas e fortaleça a relação entre o Poder Público e a população pela melhoria da infraestrutura oferecida.
Mariana Guenka é sócia na área de Mercado de Capitais, Rafaella Guzela é advogada na área de Administrativo e Regulatório e Raphael Martins é advogado na área Tributária, todos do Souto Correa Advogados.
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