A natureza dinâmica do mercado de capitais permite que ele viabilize de maneira eficiente transferências de recursos de investidores para empresas, por meio de financiamento, associação ou negociação de valores mobiliários. Nesse último caso, as operações são feitas com base nas informações públicas divulgadas de forma periódica pelas companhias emissoras de ações e outros títulos. Esse dinamismo, no entanto, apresenta um desafio a mais para os reguladores, que precisam se adaptar constantemente às mudanças do mercado para garantir acuidade do alcance da regulação. Um exemplo recente envolve a crescente importância das redes sociais como canais de comunicação e interação.
No Brasil, todas as atividades relativas ao mercado de capitais são reguladas e fiscalizadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão responsável por analisar o cumprimento de regras de governança corporativa e de mercado pelas companhias abertas, por acompanhar a atuação de outros agentes e por avaliar as condutas dos investidores. Nesse ambiente, de alto risco e volatilidade, é imprescindível a observância das regras da CVM, que em geral têm o objetivo de assegurar um tratamento equitativo entres todos os participantes.
Manipulação de preços
A CVM dedica especial atenção à violação de normas envolvida na manipulação artificial de preços de ações com o intuito de obtenção de vantagem indevida. Essa prática está enquadrada na esfera administrativa como “manipulação de preços” (nos termos do inciso II, “c” da Instrução 8/79) e na esfera penal consta do artigo 27-C da Lei 6.385/76, com pena de reclusão de até oito anos e multa equivalente a três vezes o montante da vantagem obtida.
A preocupação com manipulação de mercado, aliás, é tema cotidiano e antigo para a CVM. Em um episódio emblemático, nos anos 1980 a autarquia identificou oscilações atípicas no preço das ações da então Companhia Vale do Rio Doce (atual Vale S.A.) que envolviam o empresário Naji Nahas. A investigação do regulador constatou que, se valendo de terceiros, Nahas manipulou os preços e obteve ganhos equivalentes a cerca de 36,9 milhões de reais em números atualizados. Nahas foi multado em 10 milhões de dólares.
O caso Nahas é um exemplo clássico da maneira como como a CVM fiscaliza e pune essa modalidade de fraude. Atualmente, para combater esse tipo de conduta, que sempre tende a envolver novos mecanismos, a CVM precisa continuamente adaptar sua forma de regular e fiscalizar o mercado.
Caso GameStop
Observe-se o que ocorreu recentemente, num episódio bastante inusitado e representativo da atual velocidade e dinâmica do mercado de capitais. No caso GameStop, apenas no mês de janeiro de 2021 as ações da empresa varejista americana saltaram 750%, algo sem precedentes.
Em um primeiro momento, a situação causou estranheza. Afinal, as informações financeiras da GameStop não indicavam uma performance extraordinária, tampouco a companhia havia divulgado algum fato relevante capaz de fazer as ações subirem nessa intensidade. Ocorreu algo bem diferente disso: os preços foram artificialmente inflados por uma série de sucessivas operações coordenadas de pequenos investidores, que se articularam por uma rede social.
A disparada das ações da GameStop originou-se de movimentos articulados dentro da Reddit, uma rede social que organiza seus usuários por grupos temáticos. Alguns investidores participantes da rede verificaram que o mercado estava convicto da queda as ações da GameStop (havia na ocasião um volume considerável de posições vendidas com ações negociadas a descoberto).
Em contato direto via Reddit, os investidores então combinaram uma ação coordenada de compra das ações de emissão da varejista, o que fez subir fortemente os preços. Para evitar perdas maiores, os detentores das posições descobertas as fecharam, tendo que comprar as ações no mercado a preços muito maiores do que o valor real da companhia sugeriria. Assim como Nahas, portanto, mas em outros tempos, os pequenos investidores da GameStop atuaram de forma irregular para manipular o preço das ações.
A priori, essa atuação dos investidores articulados pode ser entendida como uma brincadeira. Entretanto, ela revela um crime sério, assim como ocorreu com Nahas. Por isso, se algo semelhante ocorrer no Brasil, as consequências podem ser muito danosas. Não é por acaso que a CVM tem reforçado a fiscalização em torno de possíveis articulações em mídias sociais. Recentemente, inclusive, alertou o mercado de que atuará com rigor em casos de irregularidades, com a instauração de processos sancionadores e comunicação ao Ministério Público, para que ele conduza a respectiva investigação criminal. Todas as medidas da CVM, visam preservar a lisura e a equidade do mercado de capitais brasileiro.
Luiz Henrique de Carvalho Vieira Gonçalves ([email protected]), sócio conselheiro do Bichara Advogados; Tales de Moraes Moreno ([email protected]), sócio; e Waneska Tagnin Overbeck ([email protected]), sócia. Todos integram a equipe empresarial do escritório.
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