Já há muito o Brasil vem delegando a prestação de serviços públicos à iniciativa privada, conforme autoriza a Constituição Federal de 1988. Contudo, essa longevidade por si só não significa — muito menos garante — sucesso no pleno atendimento das demandas da população no que se refere às necessidades básicas de saneamento, mobilidade, energia elétrica.
Durante as últimas décadas, com centenas de concessões e parcerias público-privadas (PPPs) no estoque, houve muito aprendizado e desenvolvimento, mas também muitos erros. As constantes evoluções de marcos regulatórios, estruturas financeiras, níveis de qualidade dos serviços, reequilíbrios contratuais e sistemas de controles devem ser valorizadas e incorporadas em novas iniciativas.
Assim as concessões no Brasil atingiram um elevado grau de sofisticação em termos de implantação e execução de estruturas regulatórias, contratuais e financeiras. Elas abarcam as expectativas e necessidades de usuários, investidores, credores, operadores e poder público. Mas o aprimorado arcabouço jurídico-regulatório não deixa o mercado imune aos efeitos de gestões temerárias de projetos, revoadas populistas de governantes ou choques macroeconômicos.
Parcerias bem-sucedidas
Existem dezenas de casos bem-sucedidos, como os de NovaDutra, AutoBan e Ecovias, por exemplo. Com investimentos bilionários nas rodovias ao longo de pelo menos 20 anos, elas hoje estão entre as melhores da América Latina, com volumes de tráfego e qualidade da infraestrutura e serviços de fazer inveja a qualquer highway americana ou autoestrada europeia.
Em saneamento, registram-se exemplos de universalização do fornecimento de água e de coleta de esgoto feita em tempo recorde por concessionárias privadas em municípios como Palmas (TO), Limeira (SP), Campo Grande (MS), entre outros. Vale aqui um parênteses: apesar disso, o Brasil ainda sustenta as vergonhosas marcas de 45% da população sem acesso a coleta de esgoto e de cerca de 15% de falta de acesso no caso da água tratada.
No setor de mobilidade, entre os sucessos estão as linhas 4 e 5 do metrô de São Paulo e projetos de VLT em diversas cidades brasileiras. Dezenas de milhões de passageiros são transportados diariamente em projetos sustentados por um marco regulatório e por estruturas contratuais que estabilizam e regulam os interesses públicos e privados em relacionamentos de longo prazo.
Insucessos nas concessões
Entretanto, os insucessos não passam despercebidos. Concessionárias de rodovias que venceram licitações entre 2012 e 2013 continuam enfrentando dificuldades na execução dos serviços. Na mesma linha, um contrato de concessão aeroportuária datado de 2012 tem enfrentado, desde então, uma tempestade perfeita em termos de riscos regulatórios e financeiros — além de riscos inimagináveis para uma concessão de serviços públicos.
Projetos de infraestrutura e prestação de serviços públicos concedidos à iniciativa privada envolvem altos riscos, pela própria natureza dessas operações: necessidade de capital intensivo, longos prazos para retorno e, principalmente, componente político inerente à relação tripartite (entre usuários, concessionários e poderes concedentes).
Esses projetos exigem estudos de viabilidade fundamentados em demanda, investimento, níveis de serviços, alavancagem e retorno, de forma que possam resultar em leilões concorridos, com propostas vencedoras sólidas e consistentes. Não foi o que aconteceu nas rodadas do biênio 2012–2013, em que projetos e estudos de viabilidade deficientes resultaram em licitações e propostas vencedoras mal avaliadas. Dessa forma, a execução ficou comprometida pelas frustrações com demanda, excesso de investimentos a destempo, falta de financiamento — tudo isso num ambiente de prolongada recessão econômica.
Relicitação, remédio para os insucessos
Diante dessas dificuldades, tornou-se clara a necessidade de aprimoramento do marco regulatório, no sentido da resolução de problemas que colocassem sob ameaça a continuidade da prestação dos serviços públicos. Ao mesmo tempo, seria preciso buscar equilíbrio entre os interesses públicos e privados, para se evitar a sempre traumática ruptura da concessão por caducidade.
Nessa linha, a Lei Federal 13.448/17 estabeleceu um procedimento para a relicitação das concessões de rodovias, ferrovias e aeroportos que estivessem enfrentando dificuldades confessas de honrar compromissos e prestar os serviços públicos. A relicitação autoriza a extinção amigável do contrato de concessão e uma outra contratação com entes privados diferentes, mediante nova licitação.
A Lei 11.101/05 (Lei de Recuperação Judicial e Falências, alterada pela Lei 14.112/20) igualmente alcança as concessionárias de serviços públicos, já que estas são empresas regidas pelo Direito privado — nessa condição, quando em dificuldades financeiras podem recorrer à recuperação judicial, mecanismo que possibilita a suspensão temporária de suas obrigações.
O “laboratório” da concessão de Viracopos
No caso emblemático da concessionária do aeroporto de Viracopos, em Campinas, aplicaram-se concorrente e simultaneamente os remédios legais mencionados por diferentes entidades com distintas motivações, incluindo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Poder Judiciário. É por isso que a situação de Viracopos é considerada um laboratório jurídico de pesquisa e confirmação da aplicação de diversos mecanismos legais para uma solução equilibrada de inusitada situação.
Os “testes laboratoriais” de Viracopos não se encerraram: falta o cálculo do valor da indenização que caberá à entidade privada pelos investimentos feitos e ainda não amortizados. Da mesma forma, aguarda-se os vereditos das arbitragens que estão em curso e que deverão apurar e estabelecer as demais indenizações devidas de parte a parte (concessionária e poder concedente). Completando o roteiro, após a aprovação do plano de recuperação judicial pelos credores da concessionária resta ainda a conclusão da materialização de seus créditos, que depende do sucesso da relicitação.
Não obstante a comprovação das hipóteses estar a meio caminho, o episódio de Viracopos até o momento tem demonstrado o acerto do marco regulatório e a compatibilidade entre as diversas previsões legais, assim como a maturidade dos agentes envolvidos: gestores públicos, Judiciário, investidores e credores. Os resultados por ora são equilibrados, evitando a ruptura da concessão ou a quebra da concessionária. Mais do que isso, garantiram a continuidade da prestação dos serviços aeroportuários — que por diversas vezes nos últimos anos foi considerada de altíssima qualidade, dentre as melhores no Brasil.
Lições das experiências com PPPs
Pode-se tirar como lição das PPPs no Brasil nos últimos 25 anos, sob a perspectiva do setor público, a necessidade primordial de planejamento prévio, estudos de viabilidade consistentes, definição equilibrada de riscos e retornos e clara visão dos benefícios intangíveis para a sociedade.
Do prisma do setor privado, é essencial uma constante atenção às demandas sociais, econômicas e políticas que podem afetar a execução do estabelecido nos contratos, uma diligente gestão do projeto e um permanente monitoramento da evolução do marco regulatório, necessário para proteção e retorno dos investimentos.
Massami Uyeda Junior ([email protected]) é sócio de Arap, Nishi & Uyeda Advogados
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