Os efeitos da pandemia de covid-19 sobre os contratos imobiliários vão muito além das indústrias de shoppings e de fundos imobiliários: reverberam em securitização de recebíveis, construção civil, incorporação imobiliária, cartórios, dentre muitas outras atividades inerentes ao segmento imobiliário. Numa tentativa de amenizar a situação, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) suspendeu temporariamente o período de lock-up em ofertas restritas — a medida interrompe o intervalo de quatro meses que se impõe aos ofertantes entre duas ofertas públicas distribuídas com esforços restritos. Dentre outras determinações, a postergação do cumprimento de prazos para realização de assembleias gerais. Mas a situação é bastante complexa nesse amplo mercado.
Antes de mais nada, vale destacar que neste momento não devem ser poupados esforços para se preservar vidas. Mas, simultaneamente, é preciso documentar as ações voltadas à manutenção de direitos, à garantia da sustentabilidade econômica e à continuidade dos negócios. É descabida uma visão meramente maniqueísta ou dicotômica. A solução é mais integrada e complexa.
Alguns cuidados importantes devem ser tomados para se evidenciar as iniciativas adotadas para preservação de valor de empresas, empreendimentos e negócios. Esse trabalho demandará ainda mais organização e disciplina, em especial para elaboração de um plano de ação (de curto prazo), mas com visão de longo prazo (pós-crise). Particularmente para o mercado de capitais, são importantes atitudes como atuar com inteligência para obter, atualizar, organizar e compartilhar informações; estabelecer a melhor forma de comunicar o mercado, os investidores, os consumidores e as equipes a respeito dos desafios e das ações que são adotadas.
Estar pronto para a retomada exige foco no resultado, uma postura literalmente fiduciária e profissional. É necessário proteger os recursos em caixa (mas sem deixar de enfatizar que a premissa deve ser a continuidade dos negócios a longo prazo), revisar despesas e procedimentos. Especial atenção deve ser dada aos investimentos: congelar os adiáveis sim, mas não negligenciar os que podem garantir a sustentabilidade do negócio após a crise, principalmente os feitos em equipes treinadas e aculturadas. Para o mercado imobiliário especificamente, também vale estabelecer diferentes cenários e projeções de custos, com ou sem determinadas fontes de receitas — empreendimentos/ativos ou principais clientes. Outro ponto importante é a abertura para novas ideias. Usar criatividade diante dos passivos é bastante desejável, com novas formas de comercialização de produtos e serviços e de interação e prestação dos serviços com atuais e novos clientes, por exemplo.
Insolvência e renegociação de contratos
No mercado imobiliário, a ocorrência de insolvência e de prejuízos parece inafastável. Serão comuns regras para rescisão de contratos, suspensão de penalidades, prorrogação de obrigações e alongamento de prazos. A negociação de waivers e o realinhamento de prazos e obrigações (como impostos, pagamentos e entregas) demandarão cautela e resignação. O cumprimento de contratos ou acordos exigirá de todos os envolvidos uma postura diferente, uma visão mais ampla, profissional, proativa, social e responsável. Serão essenciais para a amenização de perdas a correta aplicação de instrumentos jurídicos para a solução dos conflitos, com a devida consciência e cautela. A chamada “teoria da imprevisão” tem eficácia relativa. A simples rescisão ou revisão contratual não restabelece necessariamente o equilíbrio dos negócios — isso porque não há vantagem excessiva de uma parte em detrimento do prejuízo da outra nesse contexto de crise sem precedentes.
A análise contratual e seus efeitos deverão ser tratados individualmente, sempre considerando a conscientização social, a necessária imparcialidade, a boa-fé, o equilíbrio das perdas, e com valor ao aspecto associativo e colaborativo dos contratos. O dano deve ser real e vinculado diretamente à crise. O caso fortuito não pode resultar em passe livre para que se esquive de toda e qualquer obrigação contratual, dando espaço ao oportunismo. Certamente, e de forma míope, argumentos serão utilizados meramente com base na comoção pública e na tentativa de sensibilizar o julgador.
É indispensável frisar que o devedor somente poderá se eximir dos prejuízos em relação aos quais expressamente não tiver se responsabilizado (por ação ou omissão) e que tenham advindo de um fato necessário, que não era possível prever, evitar ou, impedir na celebração do contrato. Assim, o devedor que estiver constituído em mora antes da decretação do estado de quarentena não deve ser abrangido pelo benefício da excludente de responsabilidade, pois sua mora decorre de motivos alheios aos ocasionados pela quarentena.
A negociação deverá ocorrer de forma integrativa e colaborativa. É importante que envolva profissionais de reestruturação e advocacia. Recomenda-se a adoção preferencial pela mediação ou pela postergação de obrigações (seja a rescisão ou o uso de cláusulas penais) para serem reavaliadas em um cenário mais claro e definido, em seis meses ou um ano, por exemplo. Cabe também contar com o apoio das medidas governamentais, que envolvem socorro financeiro e adiamento de tributos.
Todavia, se for inevitável que obrigações sejam postergadas, empresários, gestores, e representantes com deveres fiduciários deverão se preparar para a renegociação. Os credores e investidores, por sua vez, poderão exigir incentivos adicionais para a renegociação (além das medidas de preservação de valor), como maior taxa, alteração de prazos, amortização e novas garantias (os incentivos mais comuns). Além disso, é necessário melhorar a governança corporativa da empresa ou do empreendimento — inclusive com auditoria, administração e cobrança de créditos —, rever e reorganizar os processos internos da empresa ou do negócio e otimizar os processos e as tecnologias.
Torna-se necessário, ainda, melhorar a posição de crédito na estrutura de capital (senioridade, preferência, breaking fee), trocar a dívida simples por ações, bônus de subscrição ou dívida conversível; combinar “consentimento de saída” para que o investidor possa tomar a decisão neste momento com mais rapidez; condicionar a transação a um percentual mais elevado de participação (por exemplo, 95%); propor a utilização de capital próprio ou a ampliação de participação (skin in the game); fazer antecipações extraordinárias, voltadas para o realinhamento do risco.
Diante de cada negociação, não se pode esquecer da formalização das tratativas ou de simples acordos neste momento. Fazer uso da mediação, sujeitando as partes à avaliação do mediador (eleição de um terceiro ou órgão) em uma data futura (por exemplo, novembro de 2020) a respeito da divisão das perdas entre as partes — passados esses meses, a extensão dos fatos deve estar mais clara e definida e clara. São recomendáveis a abertura e a manutenção de canal de comunicação específico para sugestões, apoio e informações às contrapartes e até para clientes; a identificação de potencialidades em segmentos econômicos “menos afetados”, como o Minha Casa, Minha Vida, que irão contribuir positivamente com a adoção de modelo de parceria público-privada (PPP) com subsídio misto (aluguel social mais subsídio na aquisição).
Mudanças regulatórias para o mercado imobiliário
O mercado imobiliário deve também manter-se informado a respeito das alterações regulatórias e das oportunidades a elas relacionadas. Exemplos a seguir.
— A CVM¹ suspendeu temporariamente o período de lock-up em ofertas restritas e tomou outras medidas para mitigação dos impactos da pandemia sobre a atividade econômica.
— Em comunicado, o regulador deixou claro que não lhe cabe adiar a realização de assembleias gerais das companhas abertas (encontros que devem acontecer, em geral, até 30 de abril), mas informou que trabalha junto ao governo federal para encontrar uma saída — nos bastidores, a CVM trabalha junto com outros órgãos federais em uma proposta de medida provisória que viabilize o adiamento de assembleias.
— A CVM estabeleceu² novo sistema para voto a distância de fundos de investimento imobiliários. Uma plataforma agilizará procedimentos de assembleias, além de garantir mais segurança e transparência; a central de inteligência corporativa (Cicorp) é o novo sistema para voto a distância em fundos de investimento imobiliários.
— A Superintendência de Relações com Investidores Institucionais (SIN) da CVM³ facilitou o entendimento sobre o funcionamento e as operações realizadas pelos fundos, em especial no que se refere ao desenquadramento passivo de carteira para fundos, às assembleias gerais no contexto da pandemia e à troca de documentos entre prestadores de serviços de fundos de investimento.
— O Banco Central autorizou fintechs específicas a emitir cartões de crédito⁴ e regulamentou⁵ a abertura de empresa simples de inovação.
No caso do Brasil, alguns fatores positivos deverão contribuir para que a recuperação da atividade ocorra com mais rapidez. Apesar de existir alguma fragilidade financeira em razão dos últimos anos de recessão, é possível notar que empresas e fundos de investimento estão mais bem preparados, com recursos em caixa ou com linhas de financiamento ou estratégias de contingência eficientes. A baixa taxa de juros e a aproximação entre mercado de capitais e setor produtivo de pequeno e médio portes, com a captação de poupança popular e a presença de investidores de varejo, deverão favorecer a recuperação. Os fundos imobiliários, altamente profissionalizados, mantêm seus respectivos ativos de qualidade — o patrimônio permanece, apenas a renda está sensibilizada. Não há alavancagem nesses fundos. Processos foram racionalizados e as empresas têm estruturas mais enxutas, o que as deixa mais preparadas para crises — têm estruturas de capital melhores, menor alavancagem e caixas preservados.
Num futuro próximo, pós-crise, os aprendizados obtidos com a crise serão incorporados aos negócios, à cultura e às atividades das empresas e do mercado de capitais. As pessoas absorverão os ensinamentos. Estará estabelecido um novo “normal”, com empresas menores, porém mais produtivas; domínio amplo de ferramentas digitais para compras domésticas, atividades financeiras, educação, cuidados com a saúde, negociação de contratos, reuniões virtuais; e otimização de procedimentos.
A palavra de ordem é resignação, para que se reflita a respeito de como tornar os negócios mais resilientes. A crise certamente será intensa, mas tende a ser rápida e, sem dúvida, transitória. As empresas e as pessoas agora estão mais cientes de suas responsabilidades e de seu papel social. Afinal, de nada adianta pensar apenas em medidas jurídicas ou exigências impensadas e individuais se a economia (e os negócios) não mais subsistirem.
*Carlos Ferrari ([email protected]) é sócio fundador do escritório Negrão Ferrari Advogados NFA
Notas
¹Deliberação CVM nº 848, de 25 de março de 2020
²Ofício-Circular n° 5/2020/CVM/SIN, de 9 de março de 2020
³Ofício-Circular n° 6/2020/CVM/SIN, de 26 de março de 2020
⁴Resolução Bacen nº 4.792, de 26 de março de 2020
⁵Resolução nº 55, de 23 de março de 2020
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