Talvez ainda seja cedo para se ter uma noção mais exata sobre os impactos que a pandemia de covid-19, que desde o final de 2019 vem gerando sérios desafios para a população mundial, terá sobre o Direito societário¹.
Os primeiros e, ao menos até o momento, mais evidentes impactos se deram nas regras relativas às assembleias gerais. Houve, no Brasil e no mundo, uma tendência geral de postergação do prazo máximo para a realização das assembleias gerais ordinárias (AGOs) de 2020, acompanhada de uma flexibilização das regras relativas à realização das assembleias gerais para permitir que os acionistas pudessem se reunir de modo parcial ou exclusivamente digital².
No Brasil, a possibilidade de os acionistas participarem remotamente das assembleias gerais de companhias abertas é prevista na Lei 6.404/76 desde 2011³ e foi regulamentada em 2015⁴. No entanto, até a edição da Medida Provisória (MP) 931/20, a lei societária exigia que as assembleias tivessem, necessariamente, um componente presencial, e mesmo as assembleias híbridas — nas quais os acionistas podem participar presencial ou virtualmente — embora já permitidas, raramente eram realizadas⁵.
Conquanto tenham sido concebidas dentro do mesmo pacote de medidas destinadas a lidar com as restrições impostas pela pandemia, a prorrogação do prazo para realização das AGOs e a possibilidade de realização de assembleias de modo exclusivamente digital se diferenciam quanto à sua perenidade. Com efeito, a primeira medida teve caráter pontual, enquanto a segunda foi desde o início pensada como uma alteração de caráter permanente.
A bem da verdade, parece-me que, cedo ou tarde, a realidade imporia essa alteração legal, no sentido de permitir a realização de assembleias de modo exclusivamente digital. Reconheço quão questionável é o exercício de imaginar como o futuro seria caso o passado tivesse transcorrido de modo diferente, mas o desenvolvimento de novas tecnologias, que já vinham alterando a forma pela qual nos comunicamos, além de certos movimentos no Direito comparado, autorizam o palpite de que a legislação societária eventualmente seria alterada nesse sentido⁶.
A pandemia, nesse sentido, parece ter antecipado reformas que não estavam programadas, mas que se impuseram como medida necessária para viabilizar AGOs que, ainda que com atraso (em relação ao prazo originalmente fixado), precisavam acontecer.
No caso do Brasil, os ajustes na legislação societária chegaram com algum atraso. É verdade que, aqui, os efeitos da pandemia se fizeram sentir de modo mais agudo a partir de meados de março, quando muitas AGOs já haviam sido convocadas. Dito isso, a MP 931/20, que tratou do assunto⁷, foi editada em 30 de março de 2020, ou seja, no último dia do prazo ordinariamente estabelecido para convocação das AGOs. A CVM conduziu um processo normativo (completo, incluindo audiência pública) em tempo recorde, tendo em 17 de abril de 2020 editado a Instrução 622, que alterou a Instrução 481/09 e estabeleceu um novo regramento para as assembleias digitais.
No ano passado, fiz um levantamento com as 72 companhias abertas cujas ações integravam a carteira do Ibovespa para o quadrimestre de maio a agosto de 2020 para avaliar como elas haviam realizado ou iriam realizar as suas AGOs naquele ano⁸. O gráfico abaixo mostra o resultado desse levantamento, que identificou que 42 companhias (58,33% da amostra) haviam realizado suas assembleias de modo presencial, 5 (6,94%) de modo parcialmente digital e 25 (34,72%) de modo exclusivamente digital.
Temporada 2020: modo de realização da AGO pelas companhias da amostra
O estudo demonstrou, contudo, que a opção das companhias havia variado bastante ao longo da temporada de assembleias, que, como visto, se iniciou antes da edição da MP 931/20 e transcorreu, em larga medida, antes da edição da Instrução 622. Mais especificamente, viu-se que as assembleias digitais, embora representassem um percentual minoritário da amostra total (ainda assim, representativos 34,72%), tornaram-se progressivamente mais comuns a partir da edição da Instrução 622, sendo a opção mais utilizada (78,57%) pelas companhias que, valendo-se da extensão de prazo, realizaram as suas AGOs a partir de 1º de maio de 2020. O gráfico a seguir consolida as informações coletadas no primeiro estudo.
Temporada 2020: evolução do modo de realização da AGO pelas companhias da amostra
Este artigo busca dar continuidade ao trabalho feito no ano passado e examinar como as companhias abertas organizaram as suas AGOs na temporada 2021. Com o objetivo de ter dados comparáveis, optei por analisar as mesmas companhias do trabalho anterior, isto é, aquelas cujas ações integravam a carteira teórica do Ibovespa no segundo quadrimestre de 2020. A amostra deste ano é, entretanto, ligeiramente menor, pois duas companhias tiveram que ser excluídas, na medida em que uma foi posteriormente incorporada⁹ e, com relação a uma segunda¹º, não foi possível encontrar na internet informação sobre o modo pelo qual pretende realizar a sua AGO. O universo amostral deste estudo é, portanto, composto por 70 companhias, listadas na tabela anexa.
O que aconteceu desde as AGOs de 2020
Antes de passar à análise dos dados coletados para o estudo da temporada de AGOs de 2021, vale mencionar alguns fatos desde a publicação do artigo anterior.
Começo destacando que a reforma iniciada pela MP 931/20 foi concluída com a edição da Lei 14.030, em 28 de julho de 2020. A lei de conversão deu aos §§2º e 2º-A do artigo 124 da Lei 6.404/76, redações ligeiramente distintas daquelas que constavam originalmente da medida provisória. Um dos ajustes foi positivo: permitir (ou, na visão de alguns, esclarecer) que companhias fechadas também realizem suas assembleias de modo exclusivamente digital — nesse caso, observada a regulamentação do Departamento de Registro Empresarial e Integração (Drei).
Por outro lado, a MP genericamente atribuía à CVM competência para, por meio de normativo, excepcionar as regras do §2º, enquanto o texto final do novo §2º-A do artigo 124 apenas autoriza a autarquia a regulamentar as assembleias gerais. Valendo-se da competência mais ampla que era prevista na MP, a Instrução 622 previa que “nas assembleias realizadas de modo parcialmente digital, a reunião presencial poderá, em caráter excepcional e mediante justificativa apresentada no edital de convocação, ocorrer fora da sede da companhia, inclusive em outro município”. Em razão do texto final da Lei 14.030/20, a CVM editou a Resolução nº 5/20 ajustando os dispositivos da Instrução 481/09 que tratam dessa matéria.
Outro ponto que merece destaque se refere à revisão, pelos principais consultores de voto (proxy advisors), do seu posicionamento a respeito da realização de assembleias gerais por meio de sistemas eletrônicos digitais. A consultoria Glass Lewis, por exemplo, hoje entende que a utilização de sistemas eletrônicos pode reduzir custos, facilitar a participação e mesmo melhorar a experiência dos acionistas¹¹. Seu posicionamento hoje é mais favorável à utilização de ferramentas que facilitem a participação virtual dos acionistas, ainda que a referida consultoria expresse preocupação com a utilização de ferramentas que não permitam uma participação efetiva dos acionistas.
Vale também referência à iniciativa da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), do Instituto Brasileiro de Relações com Investidores (Ibri) e de alguns participantes do mercado de edição de um “Guia de Boas Práticas em Assembleias Digitais”, sistematizando princípios e fazendo uma série de recomendações para a melhor condução dos conclaves por meio dos sistemas eletrônicos¹².
Por fim, em 29 de março de 2021 — ou seja, já durante a temporada de assembleias deste ano — o governo editou a MP 1.040 que, dentre outras medidas, alterou o inciso II do §1º do art. 124 da Lei 6.404/76 para ampliar o prazo de antecedência da primeira convocação de assembleia geral de companhia aberta para 30 dias. A referida alteração entrou em vigor na data de publicação da MP, o que faria com que algumas companhias abertas, que não haviam convocado suas AGOs, ficassem impossibilitadas de cumprir com o novo prazo. Mas, no dia seguinte (30 de março), a CVM, valendo-se do poder que lhe foi atribuído pela própria medida provisória, editou a Resolução CVM 25, permitindo às companhias abertas continuar observando o prazo de antecedência mínimo de 15 dias de convocação de assembleias gerais, desde que tais assembleias já tenham sido ou venham a ser convocadas até 30 de abril de 2021.
A temporada de AGOs 2021 em números
A análise do material divulgado pelas companhias da amostra quando da convocação de suas AGOs de 2021 (edital de convocação e manual da assembleia) indica que o modelo exclusivamente digital passou a ser a principal opção das companhias. Das 70 companhias pesquisadas, 48 (68,57%) realizaram ou irão realizar suas AGOs de modo exclusivamente digital, como mostra o gráfico.
Temporada 2021: modo de realização da AGO pelas companhias da amostra
Ao comparar esse resultado com aquele obtido no levantamento referente ao exercício de 2020, o gráfico abaixo deixa essa prevalência ainda mais evidente.
Temporadas de 2020 e 2021- modo de realização da AGO pelas companhias da amostra
Note-se que o percentual de companhias que optou por realizar suas AGOs de modo exclusivamente digital em 2021 (68,57%) é próximo, embora ligeiramente inferior, àquele observado nas companhias que, no ano passado, se valeram da extensão de prazo criada pela MP 931/20 e realizaram suas assembleias após o mês de maio (78,57%). Embora teoricamente se pudesse cogitar uma regressão na preferência das companhias pelas assembleias digitais, essa percepção é desmentida pelos demais dados do levantamento, que comprovam não só que as assembleias digitais se tornaram a opção mais comum das companhias pesquisadas, mas evidenciam o sucesso em que se tornaram. A esse respeito, pode-se destacar os seguintes dados:
— 18 companhias que fizeram suas AGOs de modo presencial em 2020 irão, neste ano, realizar assembleias 100% digitais e outra fará uma AGO híbrida;
— nenhuma companhia da amostra que realizou a assembleia de modo exclusivamente digital em 2020 optou por fazê-la de forma presencial em 2021;
— todas as cinco companhias que realizaram assembleia de modo híbrido em 2020 migraram para o modelo exclusivamente digital;
— mesmo algumas companhias que haviam, no instrumento de convocação, previsto a realização de AGOs híbridas ou presenciais, optaram por posteriormente migrar para um formato exclusivamente digital em virtude do novo agravamento da pandemia¹³.
Os dados compilados parecem não deixar qualquer espaço para dúvida de que as assembleias digitais foram bem recebidas pelas companhias abertas, muito embora parte delas resista à migração. Esse resultado pode ser explicado a partir de uma importante diferença e de uma importante semelhança entre a temporada atual e a anterior.
A diferença reside no fato de que as assembleias exclusivamente virtuais se tornaram possíveis no meio da temporada passada com a edição de uma norma que, ao regular de modo um pouco mais detalhado (ainda que não minudente) os requisitos necessários para o sistema eletrônico, ofereceu também mais segurança para as assembleias híbridas. Já as AGOs de 2021 foram ou serão todas realizadas na vigência de um regime que pode até não ser considerado o ideal, mas que é claro, previsível e, sobretudo, já testado. Com efeito, o histórico de assembleias digitais ainda é incipiente, mas a experiência acumulada desde a edição da Instrução 622/20 não aponta nenhum problema estrutural que desabone a realização desses conclaves por meio de sistemas eletrônicos.
Por sua vez, a semelhança entre as temporadas de AGOs de 2020 e 2021 decorre do triste fato de que, passado mais de um ano, a pandemia não só persiste, como, a despeito de algumas notícias alvissareiras, como o rápido desenvolvimento de diversas vacinas, encontra-se em uma fase bastante crítica no Brasil. De fato, foi em março — mês em que a divulgação dos documentos das AGOs se intensifica — de 2020 que os efeitos da pandemia se fizeram sentir de modo mais agudo no País e foi em março de 2021 que muitos estados intensificaram as medidas restritivas em razão da significativa piora nas estatísticas, que indicam que, passado um período de relativa melhora, a situação do Brasil voltou a níveis alarmantes.
Esse fato, aliás, indica que os números desta temporada de AGOs devem ser analisados com certa cautela, sobretudo quando se busca fazer algum tipo de juízo acerca da perenidade das assembleias digitais e sobre a popularização do modelo híbrido no futuro. Uma avaliação mais segura sobre esses pontos somente poderá ser feita quando não houver mais restrições, impostas pela lei ou por um senso de responsabilidade social, à circulação e à reunião de pessoas.
Sistemas eletrônicos
Das 49 companhias da amostra que realizaram ou irão realizar assembleias híbridas ou digitais, 15 (30,61%) não informaram, nem no edital de convocação nem no manual da assembleia, qual será a ferramenta utilizada, esclarecendo que a informação será apresentada somente para os acionistas que se habilitarem para participar da assembleia. A medida parece justificável, sobretudo quando a companhia entende que a decisão acerca do sistema eletrônico dependerá, dentre outros fatores, do número de acionistas cadastrados.
A amostra parece indicar, contudo, que, em linha com o observado na temporada de 2020, a vasta maioria das companhias opta por sistemas amplamente conhecidos e disseminados para realizar suas assembleias digitais. De fato, considerando apenas as 34 companhias que informaram, nos documentos publicamente disponibilizados, qual o sistema que seria (ou será) utilizado, vê-se que três sistemas respondem por 76,47% da amostra (26 companhias): Zoom, adotado por 11 companhias (33,25%); Teams, adotado por 9 companhias (26,47%); e ALFM Easy Voting, adotado por 6 companhias (17,65%). Destaco que a maioria das companhias irá utilizar sistemas eletrônicos que não foram desenvolvidos especificamente para assembleias e não possuem, por exemplo, ferramentas para coleta de votos.
Gustavo Machado Gonzalez ([email protected]) é advogado, professor e ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Notas
¹ Sobre o assunto cf. Martin Gelter e Julia M. Puaschunder, COVID-19 and Comparative Corporate Governance. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3772965.
² Para uma visão geral sobre como diversos países reagiram, cf. Chris Rushton (Glass Lewis), “Coronavirus Fears Impacting Annual Shareholder Meetings (Updated)”. Disponível em: https://www.glasslewis.com/s-fears-impacting-annual-shareholder-meetings/
³ Lei 12.431/11.
⁴ Instrução 561/15
⁵ O mesmo fenômeno se verificava nos Estados Unidos, muito embora a legislação societária de diversos Estados já admitisse a realização de assembleias digitais. Como nota Andrew Gebelin: “In a world of increasing interconnectivity and digitalisation, shareholder meetings have, until recently, largely remained an analogue affair. In the United States, where remote participation in shareholder meetings has been legally permissible in some states for over a decade, the virtual meeting format had been most commonly utilised by small cap companies and represented less than 10% of shareholder meetings.” Andrew Gebelin (Glass Lewis), “Glass Lewis’ Updated Approach to Virtual Meetings Globally”. Disponível em: https://www.glasslewis.com/glass-lewis-updated-approach-to-virtual-meetings-globally/.
⁶ Tanto assim que, muito antes de a pandemia irromper, João Pedro Barroso Nascimento dedicava-se a estudar as assembleias digitais em seu doutorado. A tese foi posteriormente convertida no livro “Assembleias Digitais e outros reflexos das tecnologias nas assembleias de S/A”, editado pela Quartier Latin em 2020.
⁷ A MP 931/20 estendeu o prazo conferido às sociedades anônimas cujo exercício social se encerrasse entre 31/12/2019 e 31/3/2020 para realização da AGO e conferiu à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) competência para editar regulamento excepcionando as exigências do §2º do artigo 124 para as sociedades anônimas de capital aberto, inclusive para autorizar a realização de assembleia digital.
⁸ Publicado na Revista Capital Aberto em 17/6/2020. Disponível em < https://capitalaberto.com.br/secoes/artigos/assembleias-digitais-impressoes-iniciais-sobre-a-temporada-de-agos-de-2020/ >
⁹ TIM Participações S.A., cuja incorporação foi aprovada em 31/8/2020
¹º Equatorial Energia S.A.
¹¹ Cf. o já referido “Glass Lewis’ Updated Approach to Virtual Meetings Globally”
¹² Cf. https://www.guiaassembleiasdigitais.com.br/
¹³ O ajuste, em certos casos, foi feito por meio de comunicado de fato relevante, possibilidade que a Instrução 622 previa apenas no ano passado como uma medida transitória.
Anexo
Relação das empresas pesquisadas e dos dados compilados
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