É fato que o cenário econômico global mudou radicalmente. Os efeitos da pandemia do novo coronavírus devem desencadear uma recessão mundial jamais vista na história. Embora os impactos já sejam sentidos na maioria dos países e nos mais diversos setores da economia e sociedade, sua extensão permanece incalculável.
Sem entrar no mérito do reflexo direto da crise sobre as bolsas de valores e, consequentemente, sobre os preços das ações, a recomendação ou determinação das autoridades para se evitar aglomerações afetará diretamente a realização, pelas companhias, de suas assembleias gerais ordinárias neste ano. Este artigo trata das implicações da crise da covid-19 para a obrigação das companhias abertas de realizar suas assembleias gerais ordinárias anuais dentro do prazo legal e aborda, ainda, os reflexos decorrentes dessa obrigação.
Assembleias presenciais
A impossibilidade ou a dificuldade de realização de assembleias presenciais é um problema atualmente discutido em todo o mundo. As autoridades regulatórias de diversos países, casos de Estados Unidos e China, concederam às empresas sob sua jurisdição prazos adicionais para a divulgação de informações financeiras e, consequentemente, para a realização das assembleias gerais anuais. A Securities and Exchange Commission (SEC), reguladora do mercado de capitais dos Estados Unidos, concedeu flexibilidade regulatória às companhias para que, inclusive, realizem assembleias gerais inteiramente virtuais.
Muitas companhias ao redor do mundo também estão tomando as providências para lidar com as restrições decorrentes dos efeitos do novo coronavírus. O Starbucks Corporation, por exemplo, realizou a sua assembleia geral anual exclusivamente por meio virtual. Ao abrir a assembleia, o CEO da companhia discursou chamando a atenção para o fato de que uma assembleia que tradicionalmente reunia milhares de pessoas estava sendo feita de forma integralmente virtual, com o objetivo de colaborar com a mitigação dos impactos do novo coronavírus. A assembleia, como não podia deixar de ser, teve um grande enfoque nos possíveis impactos da covid-19 para as atividades da empresa.
Previamente à epidemia do novo coronavírus e a qualquer manifestação de autoridades nesse sentido, as companhias abertas no Brasil deveriam realizar assembleia geral ordinária nos quatro meses seguintes ao término do exercício social, nos termos do artigo 132 da Lei 6.404/76 (Lei das S.As.)
A assembleia geral de acionistas, conforme as regras então vigentes, deveria ser realizada respeitando-se uma série de formalidades, entre elas a sua realização preferencialmente na sede da companhia, o registro de presença de acionistas e a transcrição da ata em livro próprio. Essas formalidades, vale ressaltar, pressupõem sempre a presença física dos acionistas.
Em razão da recente pulverização do mercado de capitais brasileiro e com o objetivo de atrair cada vez mais investidores, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vinha adotando medidas para facilitar a participação remota de acionistas em assembleias. A autarquia já havia regulamentado a possibilidade de participação e votação a distância em assembleias gerais de companhias abertas por meio da Instrução 481, de modo que o acionista que optasse por exercer seu voto remoto teria o seu direito assegurado pela norma.
O boletim de voto a distância, ainda que representasse um grande avanço do ponto de vista da celeridade e da não necessidade de comparecimento de acionistas no processo de votação, não permitia aos acionistas a participação nas deliberações da assembleia ou na discussão dos temas apresentados pela administração de forma direta.
Na mesma linha, o artigo 21-C da Instrução 481 faculta às companhias abertas a disponibilização, aos seus acionistas, de sistema eletrônico para a participação a distância em assembleias, desde que esse sistema assegure, no mínimo, os registros de presença de acionistas e de seus respectivos votos. Ocorre que até hoje as companhias não implementaram esse mecanismo, restando aos acionistas, em regra, apenas a possibilidade de votar a distância.
Em 2014, a audiência pública SDM nº 09/14, com o objetivo de discutir possíveis alterações do texto da Instrução 481, levou para a pauta o tema das assembleias virtuais. No entanto, a conclusão da CVM foi de que não havia tecnologia suficiente para se garantir a realização de uma assembleia virtual de maneira eficiente. Além disso, o regulador considerou que não seria razoável impor às companhias abertas a inclusão dessa tecnologia em seus processos¹.
Em meio à pandemia do novo coronavírus, em 30 de março de 2020 o governo federal publicou a Medida Provisória 931 (MP 931), que, entre outras novidades, concedeu expressamente à CVM o poder para autorizar as companhias abertas a realizar assembleias digitais — desde que sujeitas à regulamentação da autarquia.
Entre as questões a serem regulamentadas pela CVM há um ponto complexo: ainda que regras para assembleias virtuais de companhias abertas sejam criadas, os estatutos de muitas dessas empresas estabelecem que a assembleia geral deverá ser feita na sede da companhia. Isso significa que, considerando o tempo e as formalidades necessárias para alterações em estatutos sociais, grande parte das companhias estaria descumprindo seus próprios atos societários ao optar por promover suas assembleias de forma não presencial.
Além disso, o formulário de referência prevê campo de preenchimento próprio e obrigatório² para as companhias informarem se têm sistema que permite a participação a distância do acionista em assembleias gerais (não apenas a possibilidade de exercício do direito de voto a distância). Neste momento, as companhias podem eventualmente não ter tempo suficiente para incluir os procedimentos necessários em seus formulários de referência, a não ser que a CVM flexibilize seus procedimentos referentes à formalização dessa alteração.
Adicionalmente, a preparação para realização de uma assembleia integralmente virtual deveria passar não apenas pelo uso da tecnologia, mas também pelo treinamento e pela adaptação de administradores da companhia, auditores e acionistas, com o objetivo de se afastar prejuízos a quaisquer das partes.
A viabilidade de realização de assembleias virtuais é, ainda, constantemente abordada em discussões objetivando a preservação de direitos de acionistas minoritários. Há muita oposição ao tema, com o argumento central relacionado ao acesso a documentos e informações por parte dos acionistas minoritários. Os efeitos da pandemia, no entanto, deveriam colocar esse tipo de discussão em segundo plano, especialmente diante da necessidade da realização das assembleias gerais ordinárias para aprovação das contas e demonstrações financeiras dentro do prazo estipulado pela legislação e pela regulamentação, o que permanece um desafio mesmo diante das prorrogações realizadas.
Prorrogação de prazos
A CVM, demonstrando sua atenção aos reflexos da pandemia do novo coronavírus no Brasil, por meio do Ofício-Circular/CVM/SNC/SEP/nº2/2020, manifestou-se previamente a qualquer alteração legislativa nesse sentido e traçou recomendações gerais às companhias para elaboração de suas demonstrações financeiras e formulários de referência. Esse ofício reuniu orientações sobre os efeitos da crise nas demonstrações financeiras das companhias abertas e recomendou que elas avaliem a necessidade de divulgação de fato relevante e de projeções e estimativas relacionados aos riscos decorrentes da atual situação na elaboração do formulário de referência.
No último dia 25 de março, a CVM editou a Deliberação 848, que promoveu alterações em determinados prazos regulatórios. Um exemplo foi a prorrogação, por 30 dias, do prazo para apresentação das demonstrações financeiras auditadas de fundos de investimento regulados pela CVM e das contas de patrimônios separados de titularidade das securitizadoras no âmbito das operações de emissão de certificados de recebíveis imobiliários (CRIs) e certificados de recebíveis do agronegócio (CRAs). A deliberação também prorrogou, por três meses, o prazo para a realização das assembleias gerais ordinárias que deliberam sobre as demonstrações financeiras auditadas dos fundos de investimento.
A autarquia, no entanto, não havia se manifestado a respeito de prazos que decorrem da lei — como é o caso do prazo para realização de assembleia geral ordinária pelas companhias abertas —, argumentando que eventuais alterações nesse sentido não seriam de sua competência.
A MP 931 veio para atender a essa demanda. Entre outras questões, prorrogou excepcionalmente o prazo para realização das assembleias gerais ordinárias das sociedades anônimas cujo exercício social se encerre entre 31 de dezembro de 2019 e 31 de março de 2020, que agora passa a ser de sete meses após o fim do exercício social. Dessa forma, para a grande maioria das empresas o prazo para realização da assembleia, que terminaria em 30 de abril, passa a ser o final do mês de julho de 2020.
Outro ponto modificado pela MP 931 foi o prazo do mandato dos administradores, dos membros do conselho fiscal e de comitês estatutários. Aqueles que venceriam antes da realização da assembleia geral ordinária passam a ser prorrogados até que esta seja realizada, ou até que ocorra a reunião do conselho de administração, conforme o caso. Em linha com essa deliberação, ficou estabelecido que, salvo previsão diversa no estatuto social da companhia, o conselho de administração tem competência para deliberar, ad referendum, assuntos urgentes de competência da assembleia geral.
Diante da imprevisibilidade da duração da crise, a MP 931 ainda concedeu permissão à CVM, excepcionalmente durante o exercício de 2020, para prorrogar os prazos estabelecidos na Lei das S.As. aplicáveis às companhias abertas. Consequentemente, a autarquia ficou responsável por fixar a nova data de apresentação das demonstrações financeiras pelas companhias — e o fez por meio da Deliberação 849, de 31 de março de 2020, permitindo a sua apresentação em até cinco meses a contar do término do respectivo exercício social.
A prorrogação de prazos das assembleias gerais ordinárias e de apresentação das demonstrações financeiras é coerente diante do atual cenário e está em linha com o que vinha sendo discutido por entidades e associações antes da divulgação da MP 931. Dado que grande parte das companhias abertas e dos prestadores de serviço (escritórios de advocacia, auditores independentes, instituições financeiras, entre outros) encontra-se em regime de trabalho remoto, e considerando a falta de preparo prévio para manejo de uma situação tão grave e inédita, a dilatação de prazos torna-se uma necessidade a ser atendida pelas entidades reguladoras de mercado, de forma a viabilizar a continuação da operação das companhias.
Fundos e securitizadoras
Fundos de investimento e securitizadoras também terão que lidar com as restrições decorrentes do novo cenário e das medidas adotadas para a contenção da pandemia.
Os fundos de investimento imobiliário, por exemplo, têm enfrentado um impasse com a CVM no que se refere à aprovação de matérias que envolvem conflitos de interesses. A recomendação da CVM a diversos fundos tem sido a de realização de assembleias de cotistas para aprovação ou ratificação, conforme o caso, de operações conflitadas posteriormente ao encerramento de ofertas públicas. Nesse sentido, a CVM orientou os regulados por meio do Ofício-Circular nº 1/2020-CVM/SER para que “(…) os ofertantes façam constar no Prospecto a eventual existência de aprovação anterior para a aquisição de ativos financeiros em situação de conflito de interesse, apontando em quais termos foi concedida tal aprovação, notadamente indicando os critérios de elegibilidade para a aquisição e ainda o quórum com o qual se deu a aprovação de tal matéria. Ademais, havendo a referida aprovação prévia, informem a possibilidade de que, posteriormente à oferta, seja necessária a ratificação de tal aprovação” (grifo nosso).
Com o mercado aquecido, diversos fundos imobiliários encerraram suas ofertas recentemente e estão com assembleias convocadas ou a serem convocadas num curto espaço de tempo. Da mesma forma que ocorre com as companhias abertas, os administradores e gestores desses fundos não tinham clareza sobre qual estratégia adotar enquanto a CVM não se manifestasse formalmente sobre a possibilidade e os requisitos para a realização de assembleias integralmente virtuais.
Essa manifestação veio com a Deliberação 849, que autorizou, em seu item VI, que “todos os fundos de investimento regulamentados pela CVM realizem assembleias gerais, ordinárias ou extraordinárias, de forma virtual, independentemente de previsão em regulamento, para todas as matérias elegíveis ao longo do exercício de 2020, desde que seja dada ciência e seja facultada a participação dos cotistas nos prazos previstos da regulamentação vigente”.
Por mais que haja previsão na Instrução 472, que regula os fundos de investimento imobiliário, para realização de consulta formal, esse procedimento tem se mostrado ao mercado muitas vezes mais custoso e demorado do que a realização de uma assembleia. Sendo assim, a possibilidade de realização de assembleia virtual apresentada pela CVM por meio da Deliberação 849 nos parece o melhor caminho para os fundos de investimento neste momento.
As securitizadoras, por sua vez, com diversas emissões de CRIs e CRAs realizadas nos últimos anos, também teriam que lidar, da mesma forma que as companhias listadas e os fundos de investimento, com a insegurança sobre a viabilidade ou não de realização de assembleias integralmente virtuais. Por mais que tenha havido prorrogação do prazo para apresentação das demonstrações financeiras auditadas das contas de patrimônios separados, há matérias que devem gerar necessidade de assembleia nos próximos meses, como é o caso de eventuais renegociações de dívida a serem propostas pelos devedores das emissões em razão do cenário de crise que se aproxima. Por meio do Ofício-Circular n° 6/2020/CVM/SIN, a CVM passou a admitir, na situação sanitária atual, que as securitizadoras realizem assembleias virtuais e remotas, ou mesmo que adotem excepcionalmente dinâmicas de consulta formal para lidar com o presente cenário.
Assim como nos casos de emissões de CRIs e CRAs, a necessidade de renegociação de dívidas originadas sob as mais diversas modalidades (entre elas as debêntures) é outra possível dificuldade a ser enfrentada por companhias abertas — o que nesse caso também se estenderia às companhias fechadas emissoras de debêntures objeto de oferta pública. Uma renegociação de condições em emissões de debêntures pressupõe a realização de assembleia geral de debenturistas, que por sua vez se sujeita às mesmas regras aplicáveis à assembleia geral de acionistas e, portanto, aos problemas advindos da falta de regulamentação acerca dos requisitos para a realização de assembleias virtuais.
Considerando que as juntas comerciais estão temporariamente fechadas por determinação das autoridades, uma dificuldade adicional seria a necessidade de registro da ata de assembleia geral de debenturistas nesses órgãos para que suas deliberações produzam efeitos perante terceiros. No entanto, a MP 931 estabeleceu a possibilidade de se levar os atos a registro apenas quando da reabertura das juntas comerciais, sem que isso prejudique a validade dos efeitos perante terceiros.
Com a aproximação da data–limite para a realização das assembleias gerais ordinárias das companhias abertas, essas empresas e o mercado em geral aguardam o posicionamento formal da CVM em relação a uma regulamentação específica para o procedimento de realização virtual, já devidamente autorizado por meio da MP 931. Em linha com as últimas manifestações das autoridades, acreditamos que a regulamentação deve ser divulgada em breve.
Espera-se, ainda, que alternativas continuem a ser pensadas em conjunto pela CVM e pelas demais autoridades para que as companhias possam cumprir com todas as suas obrigações sem violar as recomendações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde.
Diante do fato de que grande parte da população está trabalhando por meio remoto, a concessão de um prazo adicional para realização da assembleia geral ordinária nos pareceu acertada, uma vez que deu às companhias listadas um prazo adicional para adaptação frente à crise instaurada.
Também consideramos correto o posicionamento adotado por meio da MP 931 para flexibilização de regras impostas às companhias, como é o caso da necessidade de registro e arquivamento de certos atos em junta comercial. Permitir que as deliberações tomadas produzam efeitos perante terceiros prorrogando a obrigatoriedade de registro para o momento em que as juntas comerciais reabrirem facilitará demasiadamente a adaptação das companhias, inclusive em eventual necessidade de emissão de valores mobiliários ou renegociação de dívidas.
Em última análise, podemos concluir que há previsão na legislação e na regulamentação brasileiras para a realização de assembleias exclusivamente virtuais. No entanto, como o modelo não foi testado até a presente data e considerando a manifestação da CVM dizendo que “dará prioridade à regulamentação das assembleias inteiramente digitais, que, neste momento, não são regulares à luz da legislação e regulamentação atuais” (grifo nosso), mostra-se necessária uma movimentação específica e célere por parte da CVM, de modo a apresentar soluções que viabilizem as assembleias digitais.
Seria importante que a CVM considerasse, por fim, a possibilidade de não serem instaurados processos administrativos sancionadores em função do não cumprimento de certas disposições legais e regulamentares impostas às companhias diante do atual cenário imprevisível. Essas medidas, sem dúvida, deveriam auxiliar o processo de adaptação das companhias frente à crise sem precedentes pela qual estamos passando.
Superados os efeitos da pandemia, o mundo certamente será mais digital. Serão necessárias correções e adaptações futuras, mas acreditamos que as novidades desse período farão com que nosso mercado de capitais fique ainda mais atrativo. Em paralelo às discussões políticas, as autoridades têm demonstrado interesse e especial atenção para a recuperação do mercado em momento posterior à crise. Tudo indica que teremos uma enorme demanda represada. No entanto, por ora permanecemos com a incerteza relacionada ao tempo e à magnitude da crise, indefinição que só poderá ser amenizada nos próximos meses.
*Vitor Arantes ([email protected]) é sócio de Souza, Mello e Torres. Coautoria de Fernanda Tatto ([email protected]), associada do escritório.
Notas
¹Relatório de Análise – Audiência Pública SDM nº 09/2014 – Processo CVM nº RJ-2011-13930. Rio de Janeiro, 2015, página 21. Disponível em: <cvm.gov.br/export/sites/cvm/audiencias_publicas/ap_sdm/anexos/2014/sdm0914-relatorio.pdf> Acesso em 24 mar de 2020.
²Instrução 480, Anexo 24, Item 12.2 (h): “se a companhia disponibiliza sistema eletrônico de recebimento do boletim de voto a distância ou de participação a distância”.
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